Vida Religiosa Consagrada em processo de transformação

24ª Assembleia Geral Eletiva - 11 a 15 de julho de 2016

terça-feira, 12 de julho de 2016

“Vejam que estou fazendo uma coisa nova”



“Ela está brotando agora e vocês não percebem?” [1]
                                               Pe. Tomaz Hughes SVD

“Não fiquem lembrando o passado, não pensem nas coisas antigas...”(Is 43, 18)
. 
É comum hoje, ao analisar o contexto neoliberal pós-moderno em que vivemos, falar que estamos numa época em que tudo é “líquido”, ou seja, sem formas fixas e definitivas, em constante mudança. A história da caminhada do Povo de Deus está repleta de exemplos desta constante ação criadora e recriadora de Deus. Na verdade, pode ser visto como uma série de crises que, para quem tinha o olhar de fé para enxergar além das aparências, eram, na verdade, oportunidades para aprofundar a vivência da experiência da presença do Deus da vida.   Assim, por exemplo, a série de crises na caminhada no deserto, especialmente os problemas causados pela natureza, falta de água (cf. Ex 15,22-27), falta de comida (cf. Ex 16,1-36), água amarga (cf. Ex 17,1-17), eram oportunidades para amadurecer a fé.  Havia também desafios causados pelos homens: os perigos provenientes dos inimigos de fora, como os amalecitas (cf. Ex 17,8-16), e os perigos no interior da própria comunidade, como a centralização da liderança (cf. Ex 18,1-27). Assim também foi durante a dura experiência do Exílio em Babilônia, bem como as reflexões dos profetas, salmistas e sábios. Não foi diferente com Jesus de Nazaré e com as primeiras comunidades. 
Na verdade, era algo constante na experiência do povo, desde a sua formação até o Apocalipse. Para muitos, cada crise significava o fracasso do projeto, mas, para quem tinha a sensibilidade para enxergar a ação do Espírito, as crises eram oportunidades de crescimento, aprofundamento e avanço no projeto de Deus.

A semente que quer germinar

Qualquer análise da situação da VRC hoje, especialmente na sua forma da “vida apostólica”, aponta para um contexto de crise.  Sinal do fim do projeto ou oportunidade de renovação? Pessimismo ou otimismo?  Sinal da morte ou de vida nova que começa a brotar?  Como em tudo que é humano, existe certa ambiguidade inerente no panorama da VRC hoje.  É sempre assim com a história humana.  O Povo de Deus da Primeira Aliança também passou por experiência semelhante, que talvez pudesse ter assinalado o fim e a caducidade de um projeto que durava séculos. Na verdade as crises eram arautos de uma experiência mais profunda de Deus, na fé e na esperança, e que vingou, graças à acuidade do olhar de alguns homens e mulheres que conseguiram libertar-se da camisa-de-força estrutural de uma tradição mal compreendida, para descobrir a ação criadora permanente de Deus, exatamente no meio do que parecia ser uma crise sem saída.

O Exílio em Babilônia – a Crise Definitiva

            De fato, aconteceram muitos exílios na história do Povo de Deus, alguns até mais definitivos do que aquele que aconteceu depois da queda de Jerusalém diante do exército de Nabucudonosor em 587 a.C.[2]. Mas quando se fala em “O Exílio”, sempre se pensa na experiência referencial daquele desterro da Babilônia. É importante entender o motivo disso e, quem sabe, ver alguns paralelos com a situação da VRC nos dias de hoje.
            O cerne da questão não foi somente o fato de uma boa parcela da população ser desterrada. O choque foi muito maior, por força da destruição de uma série de certezas que fundamentavam a fé e a ideologia religiosa oficial reinante no seio do povo. Simplificando, podemos elencar algumas dessas certezas:
            - Como sinal da sua predileção, Deus tinha garantido a posse da terra ao seu povo, em perpetuidade.
            - A teologia davídica, nutrida nos meios palacianos e sacerdotais de Jerusalém, enfatizava a promessa de Deus de que um descendente de Davi reinaria sobre o seu povo para sempre.
            - Jerusalém fora escolhida por Deus como cidade da sua morada perpétua.
            - De maneira especial, o Senhor fixava a sua morada no Templo de Jerusalém e somente ali é que seria adorado.
Esses princípios, entendidos como promessas provenientes do próprio Deus, se propagavam como alicerces da fé do Povo como povo escolhido. Isso criava na prática, especialmente entre a elite, um descuido com a Aliança e seus princípios, e ajudava a encobrir a arrogância e a prática da injustiça, camuflada pela teologia hegemônica.
Por conseguinte, quando em 587 o povo ficou sem terra, sem rei, sem cidade e sem Templo, para muitos ruíram não somente os muros de Jerusalém, mas os alicerces da sua própria fé. Parecia que tudo não passava de uma ilusão, que o Senhor tinha sido infiel, que o Deus de Israel tinha sido vencido pelos deuses de Babilônia, que a fé carecia de um fundamento sólido. Em um primeiro momento, não se enxergava que essas “certezas” eram invenções humanas que geravam a infidelidade à Aliança e que precisavam ser derrubadas e desmistificadas, para que pudesse renascer o povo com uma fé mais forte, pura e viva.

A grande crise da VRC

            Sem querer fazer paralelismos simplistas, parece que algo semelhante aconteceu na Igreja e, de maneira especial, na VRC. Até o Vaticano II parecia que nós estávamos seguros na nossa identidade e missão, tanto dentro da Igreja como diante do mundo.  Nós mais idosos com certeza vivíamos alguns anos nesse contexto, nessa visão. Na verdade, a história iria mostrar em pouco tempo a fragilidade dessas seguranças, da mesma maneira como se encarregou de desmascarar a falta de fundamento das bases da organização religiosa e política de Israel e Judá. Este processo é mais do que conhecido, especialmente pelos religiosos e religiosas que experimentaram na pele o “tsunami” de desistências, rachas e divisões que atingiam grandes parcelas da VRC nos anos imediatamente após o Concílio Vaticano II. 
Para muitos e muitas se deu um senso de perplexidade muito semelhante àquele que assolava os exilados no desterro babilônico.  Parecia que o tapete havia sido puxado de debaixo dos nossos pés e ficou uma sensação de vazio e confusão que, em muitos casos, continua até os dias de hoje.  Se antes a nossa identidade parecia clara a partir da nossa vocação à santidade, das nossas obras e da nossa identidade missionária, de repente vimos que o Concílio Vaticano II afirmou que existe a vocação universal à santidade, que todo cristão é missionário, e que não precisa ser religioso ou religiosa para desenvolver as atividades típicas do nosso apostolado. Cada vez mais se fez sentir a necessidade de responder uma pergunta básica: se para fazer o que eu faço não é necessário ser religioso/a, e se todos têm a mesma vocação à santidade, então por que sou religioso/religiosa?  É por não conseguir responder a essa pergunta fundamental que muitos religiosos e religiosas hoje e, particularmente, na Vida Religiosa Consagrada Apostólica, ainda encontram-se em crise!
Os tempos do exílio em Babilônia eram tempos de insegurança, de perplexidade, de questionamento, semelhantes aos tempos atuais da VRC.  Para o povo de Deus, as antigas respostas mostraram-se insuficientes para as novas indagações suscitadas pelo contexto sócio-político-religioso novo. Mesmo assim não faltavam vozes para dizer que a solução era voltar para as antigas estruturas, exatamente aquelas seguranças falsas que se mostraram sem fundamento e que contribuíram para a caminhada desastrosa de Israel e Judá. Não é muito diferente nos dias atuais: sobram vozes sugerindo uma volta às formas antigas da vivência da VRC, ignorando que, longe de serem firmes, essas mesmas estruturas eram alicerçadas na areia e que reconstruir o edifício da VRC sobre elas é garantir que toda a casa caia em ruínas. Hoje, diante das tentações de fazer uma releitura de uma “idade áurea” da VRC – que, na verdade, não era tão “áurea” assim – podemos meditar a sabedoria do autor do Livro de Eclesiastes quando disse:
Não diga: “Por que os tempos passados eram melhores do que os de hoje”? Não é a sabedoria que faz você levantar essa questão” (Ecl 6,10).
Muito pelo contrário, olhemos as pessoas que mostraram o caminho a seguir, com otimismo e fé, nos novos desafios de um novo contexto, especialmente os profetas do tempo exílico, como Deutero-Isaías, Ezequiel e Jeremias.

A voz da profecia

Assim, quando o vendaval babilônico arrasou Judá e Jerusalém, para muitos era o fim de tudo:
 Por isso, choro e meus olhos se derretem, pois não tenho perto alguém que me console, alguém que me reanime.  Os meus filhos estão desolados...” (Lm 1, 16).
Deus, porém, nunca abandona nem o seu povo, nem o seu projeto.  Através das palavras de profetas como Jeremias, nos últimos anos da sua vida, e o profeta anônimo que conhecemos como Deutero-Isaías e seus seguidores, foi possível descobrir uma luz na escuridão, uma esperança no desespero, e a ação permanente criadora do Senhor no meio dos destroços da antiga estrutura teológica e religiosa do povo.  Na verdade, o Exílio não era o fim do projeto, mas uma oportunidade de renová-lo, libertando-o dos acréscimos ideológicos e estruturais que impediram que fosse coerente com a proposta original da Aliança. Frente à perplexidade de muitos diante da situação atual da VRC, uma releitura dos pronunciamentos do Deutero-Isaías pode ser muito iluminadora e encorajadora.  De posse de tantos textos de uma beleza incomum, debrucemo-nos principalmente sobre os seguintes versículos:
“Assim diz Javé.... Não fiquem lembrando o passado, não pensem nas coisas antigas; vejam que estou fazendo uma coisa nova: ela está brotando, e vocês não percebem?” (Is 43,16-19)
O ponto fundamental para o profeta é que toda a ação salvadora provém de Deus. Deus é o protagonista do seu projeto, e Ele escolhe Israel como seu instrumento predileto, com um amor insondável e incondicional.  Durante séculos, o povo de Deus tinha se esquecido, na prática, dessa verdade, colocando a si mesmo, os seus ritos e leis como o alicerce, esquecendo que o único fundamento é o próprio Deus.  Isso levou a um deslocamento, pois, sem que notassem, o centro ficou identificado com o próprio povo e as suas práticas religiosas, e não com a ação gratuita e amável de Deus.  Ao longo do seu texto, o Deutero-Isaías não se cansa de insistir que tudo depende de Deus e que cabe ao povo colaborar com a graça de Deus e não substituí-lo por si mesmo.  Assim:
 ...cansei-me inutilmente, gastei minhas forças à toa, em nada.  Enquanto isso, quem defendia os meus direitos era Javé, o meu pagamento estava na mão de Deus” (Is 49,4)
Em 43,18 pede-se com insistência:
Não fiquem lembrando a passado, não pensem nas coisas antigas”, ou seja, não se deve fixar no passado. “O Êxodo é um acontecimento arquetípico, mas arquetípico para novos acontecimentos e não é o único realizado por Javé. A memória não é suficiente. Pode até ser desmobilizadora. Precisa ser completada com a esperança”[3].  


O único Senhor da História

Torna-se imperativo, não somente para a VRC, mas para a Igreja como tal, relembrar que o protagonista de tudo é Deus. A Igreja, a VRC, as Congregações, as obras são instrumentos do crescimento do Reino, instrumentos valiosos e escolhidos por Deus, sem a menor dúvida, mas simplesmente “instrumentos”. São como as ferramentas que Deus usa para erguer e expandir o Reino no meio de nós. Ferramentas não são eternas, podem servir muito bem em uma época, e ser anacrônicas e obsoletas em outra.  Anos atrás, na evangelização serviam como ferramentas o projetor de slides, mimeógrafo a álcool e álbuns seriados, só para recordar algumas. Hoje estão substituídas, quase em toda parte, pelos novos instrumentos de comunicação e informática.  Não serviam?  Serviam muito bem, só que passou a sua serventia e renovamos os nossos instrumentos de trabalho.  Assim com a VRC: muita coisa servia e era de grande valor, mas nem tudo serve mais.  Sem que notemos, freqüentemente identificamos o essencial da VRC com as formas de vivenciá-la e assim ficamos confusos quando a maré da história nos deixa de lado diante das mudanças rápidas do mundo pós-moderno.  Muito oportuno, neste sentido, foi o discurso do Papa Francisco para a Assembleia Plenária da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica, no mês de novembro de 2014, quando insistiu:

Como lhes recordei outras vezes, não devemos ter medo de deixar os ‘odres velhos’: ou seja, de renovar os hábitos e as estruturas que, na vida da Igreja e, portanto, também na vida consagrada já não respondem ao que Deus nos pede hoje para fazer avançar o Reino de Deus no mundo: as estruturas que nos dão falsa proteção e condicionam o dinamismo da caridade e dos hábitos que nos afastam do rebanho ao qual fomos enviados e nos impedem de escutar o grito dos que esperam a Boa Nova de Jesus Cristo”.

Por isso devemos relembrar a primeira intuição do Deutero-Isaías, que o protagonista da história da salvação é Deus e só Ele é o Absoluto. Ele desafia o povo exilado a enxergar a ação criadora de Deus no meio de tanta confusão, fraqueza e incerteza:
Vejam que estou fazendo uma coisa nova: ela está brotando agora e vocês não percebem?” (Is 43,19).
  O povo percebia muito bem o fracasso do antigo projeto, a sua debilidade como indivíduos e coletividade, a falta de perspectiva para o futuro, a pouca esperança.  Mas tinha uma tremenda dificuldade em enxergar o que Deus estava fazendo brotar, uma nova missão, livre da camisa-de-força das antigas ideologias e estruturas sufocantes:
 É muito pouco você tornar-se o meu servo, só para reerguer as tribos de Jacó, só para trazer de volta os sobreviventes de Israel. Faço de você uma luz para as nações, para que a minha salvação chegue até os confins da terra” (Is 49, 6).

Luz para as nações

Nesta segunda década do século vinte e um, muita gente na VRC passa por experiências semelhantes: saltam aos olhos a aparente debilidade do projeto da VRC tradicional.
No Brasil é quase geral a diminuição no número das vocações, especialmente para a VRC feminina; em grande parte temos o rosto de uma entidade envelhecida; fecham-se, com muita freqüência, casas religiosas, obras caritativas, casas de apostolados que, muitas vezes, pareciam ser a marca registrada das Congregações.  Frequentemente todo esse fenômeno é visto como algo fortemente negativo e carece de uma análise melhor do rumo que nossas congregações tomaram, da nova situação demográfica no país, das novas opções abertas aos jovens cristãos de hoje.  Será que Deus não fala conosco como falou nas palavras do profeta para os exilados, não com tom de ira nem aborrecimento, mas querendo nos cutucar para que tiremos as “cataratas espirituais” que impedem que vejamos o que é o “novo” que Ele esta fazendo brotar: novas formas da Vida Consagrada (com todas as ambigüidades e tensões que isso acarreta, pois somente o fato de ser “novo” não garante que seja por inspiração divina), comunidades intercongregacionais, equipes volantes e itinerantes, novas formas de presença nos “novos areópagos” como dizia São João Paulo II?  
 Qual é o “novo” que Deus está fazendo brotar hoje para a VRC? Temos que descobrir, às vezes, às apalpadelas (cf. At 17, 27), mas com a certeza que Deus não falha e que a proposta da VRC não fracassa, mas se renova, talvez em formas ainda não imaginadas, também dentro das Congregações tradicionais.
Realmente, a mensagem do profeta Deutero-Isaías deve ter sido com uma luz no fim do túnel para os exilados: “Vejam que eu estou fazendo uma coisa nova; ela já está brotando!”  Onde parecia ter somente morte, despontava nova vida; onde desânimo, um novo alento; no meio da aridez do deserto da vida, a flor.  Novos horizontes, novas perspectivas, novas esperanças!  Mas, na alegria desse anúncio, não devemos deixar passar quase como despercebido o alerta com que Deus encerra o versículo: “Ela está brotando agora...e vocês não percebem?” Uma advertência suave mas importantíssima....pouco adianta Deus criar algo novo, se o povo nem percebe!
É bom notar que, embora o profeta desafiasse o povo no Exílio a enxergar o “novo” da ação de Deus no seu meio, ele não disse como era esse “novo”.  Desafiou os exilados a descobrir por si mesmos essa novidade da ação do Espírito.  Convidou-os a enxergar a nova realidade com novos olhos e não julgá-la com a visão dos tempos idos. 
De fato, a história mostra que uma grande parte do povo não conseguia descobrir o verdadeiro “novo” que Deus fazia brotar.  No desenrolar das décadas, aconteceu o que foi previsto pelo profeta, a queda do Império Babilônico e a oportunidade para o retorno a Jerusalém para quem quisesse. Sob a liderança de Sasabassar, Zorobabel e Josué, milhares voltaram, reconstruíram os muros de cidade e o Templo, e, animados por profetas com Ageu e Zacarias, reconstituíram uma teocracia em Judá, embora politicamente subserviente ao Império Persa.  Uma nova aurora parecia despontar. Não demorou a decepção!  Apesar dos esforços de profetas como Terceiro Isaías, arautos de uma nova forma de viver a identidade judaica fiéis ao espírito renovador de Deus, a hegemonia caiu nas mãos daqueles cujos horizontes eram limitados, não por má vontade, mas pela sua incapacidade de pensar e sonhar além dos paradigmas tradicionais. 
Sob a liderança de personagens como Esdras, Neemias Ageu e Zacarias, desenvolveu-se um verdadeiro processo de “restauração” de Judá, com muitas mudanças contextuais e ajustes pontuais, mas que falhou tragicamente no verdadeiro desafio de “refundar”, “recriar” a sociedade, com uma visão verdadeiramente radicada no mais essencial das tradições do Povo de Deus, mas livre para acolher também o radicalmente novo, que teria sido o projeto de Deus.  Como consequência, durante quinhentos anos, as estruturas religiosas e sociais se tornaram um tipo de camisa-de-força para submeter o povo à dominação das classes dominantes e de esconder o verdadeiro rosto compassivo e misericordioso de Deus.  É claro que Deus não se dá por derrotado e a visão realmente renovadora continuava alimentada silenciosamente nos grupos os “Pobres de Javé”, até irromper de uma maneira impar e inesperada na pessoa e missão de Jesus de Nazaré, que ousava dispensar elementos desnecessários, acumulados durante séculos, e testemunhar claramente o essencial.
Cuidemos também de não cairmos na cilada das lideranças pós-exílicas.  Convencemo-nos que a “coisa nova” que Deus está criando na Vida Consagrada não é simplesmente um retorno aos modelos do passado, modernizados e ajustados aos novos tempos, nem consiste em buscar “novidades”, e muito menos em refugiar-nos em formas arcaicas e anacrônicas de espiritualidade, aparência e vivência. O “novo” não será uma volta às casas de formação cheias, às obras seguras, às estruturas confirmadas, embora isso também possa acontecer.  Mas precisamos desenvolver um olhar novo para que captemos o que o Espírito esta criando de novo entre nós. 
Há muitos sinais, diversos serão mencionados nessa assembleia: comunidades intercongregacionais, novas formas de inserção, missões itinerantes, novas estruturas de poder, revitalização das relações humanas, renovada opção pelos excluídos etc.  Ousemos acolher e discernir tudo isso em espírito de fé e fidelidade criativa. Acarreta riscos? Claro que sim. Sem riscos não se alcança nada na vida! Quanto os nossos fundadores e fundadoras arriscaram? E criaram algo novo, muitas vezes remando contra a maré eclesiástica, social e política.  Lancemo-nos para águas mais profundas, pois nas águas rasas de comodismo não se pesca nada! Sigamos o exemplo do Papa Francisco – sejamos os modernos Deutero e Terceiro Isaías, sonhando o sonho de Deus e colaborando no nascimento daquilo que Deus quer criar, depois de séculos de vida eclesiástica e religiosa muitas vezes dominada pelos herdeiros modernos de Esdras e Neemias! Um espírito novo sopre na Igreja e na Vida Religiosa! Acolhemos e façamos parte!

Recordar para Avançar e Inovar

No tempo de crise e perplexidade dele, Deutero-Isaías retomava a memória do Êxodo, a experiência fundante do Povo de Deus, como ponto de referência.  Com a caminhada de séculos, esses primórdios foram muitas vezes deixados no esquecimento pelos detentores do poder religioso-político em Israel mas os profetas sempre foram vozes da memória das raízes do Povo de Deus e da Aliança.  Esse desafio continua hoje para a VRC: acumulamos tantas estruturas e costumes durante a nossa caminhada milenar que, frequentemente, a intuição original, a razão-de-ser da VRC, cai ao segundo plano, se não na amnésia quase total.  Assim torna-se necessário que nós também voltemos às origens, como há muitos anos tem-se insistido. Mas não basta somente voltar às raízes, como se fosse para simplesmente “reproduzir” a experiência original, feita dentro de um contexto muito diferente daquele que confrontamos hoje.  Assim nos mostra a experiência do profeta Elias, narrado em I Rs 19, 1-18.  Desanimado, ameaçado, até desejando a sua própria morte, sem novas perspectivas, ele se dirige até o Monte Horeb[4], ou seja, ele volta às fontes. Volta, porém, sem renovar a visão, buscando simplesmente repetir a experiência do passado. Ele aguarda Javé no furacão, no fogo e no terremoto, sinais tradicionais da teofania, mas Javé não se encontrava neles.  Pelo contrário, o Senhor estava na brisa mansa, onde o profeta não o esperava encontrar.  Somente quando ele se abriu à nova maneira de Deus se manifestar, houve o seu encontro com Deus, que o renovou e o remeteu de volta à sua missão profética, com renovado ardor e nova força. 
Igualmente, somente ao abrirmos as nossas mentes, corações e olhos para novas experiências de Deus, que se manifesta sempre com novas expressões, é que a VRC receberá o impulso para “tomar o caminho de volta”. Não somente para repetir antigas formas, expressões, estruturas, obras e costumes, mas para ser “luz das nações”, mergulhada no contexto da sociedade complexa de hoje. Verdadeiramente, como escreve uma teóloga inglesa: “Tem que existir algo da essência da inspiração fundacional que não se pode perder sem que se perca a própria inspiração fundante. Os fundadores e fundadores de uma congregação religiosa focalizam o mistério de Cristo para os seus membros, mas estes fazem mais do que focalizar um aspecto dos fundadores e devem estar cientes do perigo de se fecharem em um culto dos fundadores e fundadoras. Assim novos membros podem enriquecer a inspiração fundacional trazendo à tona novos elementos que talvez não sejam suficientemente desenvolvidos”[5].
Estou criando coisa nova
Engana-se quem acha que a situação de crise atual da VRC seja coisa inédita. As formas em que ela se expressa, as manifestações concretas em muitas congregações talvez sejam novas, mas a História de Salvação demonstra que sempre foi através de crises que o projeto de Deus avançava.  Além de Deutero-Isáias, Jeremias, longe de fazer jus à sua fama imerecida de ser pessimista, tinha este olhar, nos tempos de tribulação e conturbação: “Conheço meus projetos sobre vocês – oráculo de Javé: são projetos de felicidade e não de sofrimento, para dar-lhes um futuro e uma esperança” (Jr 29,11).
Essa verdade se verifica não somente em casos do Antigo Testamento, como o do Exílio de Babilônia, mas também nos Evangelhos e nas experiências das primeiras comunidades.  Estou criando coisa nova e vocês não estão enxergando?” podia ter sido indagação, não somente no tempo do Exílio, mas de Jesus dirigindo-se aos seus discípulos.  Pois eles estavam como que cegos pela ideologia do messianismo davídico e, por isso, incapazes de entender o verdadeiro messianismo de Jesus (cf. Mc 8, 21; 8,33; At 1, 6).  As primeiras comunidades tiveram muitos problemas para enxergar o “novo” que estava despontando com a entrada dos gentios na comunidade. É só lembrar o conflito na comunidade de Jerusalém, pelo tratamento das viúvas helenistas, ou a  necessidade de uma Assembleia extraordinária, que tradicionalmente denominamos “Concílio de Jerusalém”, que acolheu o novo, representado pela experiência missionária de Barnabé e Paulo, embora demorasse a ser totalmente colocado em prática, como demonstra o conflito em Antioquia (cf. Gl 2,11-14).  O que parecia um desastre para a Igreja nascente, como a perseguição desencadeada em Jerusalém, após a morte de Estevão, mostrou-se uma bênção, pois levou a evangelização em outras regiões e entre outros povos (cf. At 8,4: 11,19-21).  Até a separação acrimoniosa e sofrida de Barnabé e Paulo, embora lamentável em si, resultou na formação de duas equipes itinerantes missionárias, em lugar de uma.  Repetidamente, o que parecia desastre, fracasso e ruína, mostrou-se renovação, revitalização e regeneração!  Mas exige um novo olhar para sair da lamentação e pessimismo e descobrir o que Deus estava fazendo brotar! 
Jesus costumava dizer, terminando as suas parábolas: “quem tem ouvidos para ouvir, ouça” (cf. Mt 13,9).  Diante da atual situação da VRC no Brasil,, o Espírito continua a germinar nova vida, mas quem sabe, precisamos retirar os “véus” dos nossos olhos e mentes para enxergar o que está acontecendo. Valem as palavras de uma grande teóloga norte-americana da Vida Religiosa, Irmã Joan Chittister OSB: “A finalidade da VRC não é a sobrevivência, mas o profetismo”.  Como escreve o Frei Timothy Radcliffe O.P. ex-Ministro-Geral dos Dominicanos:

“Esse é um tempo de crise, e a Igreja se renova pelas crises. A História de Salvação é história de crises que levam a renascimento, desde a Queda até a Última Ceia.  Esse tempo de crise para a VRC ultimamente será uma bênção e nos leva a uma renovação, talvez por caminhos que não podemos imaginar. Mas isso só acontecerá se não ficarmos obcecados com a nossa sobrevivência”[6]
 Talvez hoje o brado de Jesus para nós seja como aquele do Deutero-Isaías tantos séculos atrás: “Vejam Que Estou Fazendo Uma Coisa Nova: Ela Está Brotando Agora E Vocês Não Percebem?  Quem tem olhos para ver, que veja!”  




[1] Is 43, 19. Citações tiradas da Bíblia Sagrada Edição Pastoral; Paulus; São Paulo; 1990,
[2] Por Exemplo 2 Rs 17, 1-6

[3] Croatto, J. Severino, Isaías, : A Palavra Profética e a Sua Releitura Hermenêutica, Vol II 42-55: A Libertação É Possível, Vozes/Sinodal 1998, p.99
[4] Nome usado na tradição das tribos do Norte para Monte Sinai
[5] cf  Coffey, Sr. Mary Finbarr HC: “The Complexities and Difficulties of a Return Ad Fontes” em “A Future Full Of Hope?” ed Gemma Simmonds CJ, The Colomba Press, Dublin, 2012

[6] Radcliffe, Timothy O.P. in Simmonds, Gemma, op.cit, p.




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