João Braz Card.de Aviz
Introdução
Tenho uma
grande alegria de estar aqui com a vida consagrada do Brasil. Trago para
cada um minha saudação pessoal, a do
nosso Arcebispo Secretário do Dicastério e a dos 40 oficiais que trabalham
conosco.
Esta XXIV Assembléia Geral da CRB
está consciente do processo de transformação por que passa a Vida Consagrada
neste momento da história da Igreja, no contexto das transformações da
humanidade. Ao mesmo tempo, com a visão da fé que guia o próprio caminho, toma
nova consciência de que Deus está fazendo uma coisa nova. Todos nós cremos
firmemente nesse processo guiados pela certeza da esperança.
Há pouco concluímos o ano da vida
consagrada que teve como um de seus efeitos mais significativos reacender em
nós a esperança.
O jubileu da misericórdia nos
envolveu em uma experiência profunda de Deus e de nossas relações humanas. É
nesse clima que se realiza a XXIV Assembléia Geral.
- O tema que me foi confiado nos provoca no tomar
consciência dos caminhos da Igreja hoje e na Igreja dos caminhos da vida
consagrada: todos na busca do discipulado (testemunho do evangelho de todas as
vocações); todos discípulos missionários que caminham em comunhão oferecendo à
Igreja e à humanidade aquilo que é o próprio da vida consagrada: a profecia
(testemunho vivido e anunciado dos conselhos evangélicos). Comecemos, pois, na
busca da compreensão dos caminhos da Igreja hoje com o Papa Francisco.
1.
Os Caminhos
da Igreja Hoje com o Papa Francisco[1]
O Papa
Francisco, neste nosso tempo, colocou com vigor e clareza o imperativo exigente
da Reforma da Igreja Católica no centro de nossa consciência de Povo de Deus,
povo universal, chamado a chegar até os extremos confins da família humana.
Todos nós, em
todas as nossas vocações e em todas as circunstâncias na Igreja, somos agora
chamados a conformar-nos pessoal e comunitariamente à mesma “forma” de Jesus,
que se identifica com o desígnio do Pai sobre o homem, a mulher e o cosmos, que
está se realizando progressivamente na história.
Com muito
carisma e espírito profético o Papa Francisco retoma esta herança preciosa do
Concílio Vaticano II, como bispo da Igreja de Roma, que lhe confere o
ministério petrino, a serviço da unidade de toda a Igreja.
A revista “La
Civiltà Cattolica” dos jesuítas, com as bênçãos do papa, realizou um seminário
de 40 teólogos de todo o mundo. Eles afirmam: “A reforma exprime o próprio
mistério da Igreja na história. A vocação à renovação nasce do próprio mistério
íntimo da Igreja, como também de sua realização na história”. Trata-se da
reforma tanto na cabeça – a hierarquia – quanto nos membros do povo de Deus,
que começa a aparecer através de um concílio no início do século XIV.
Mais tarde
essa exigência da reforma, que não se pode adiar, explode na Reforma
protestante e, do lado católico, ela se concretiza nos decretos doutrinais e
decretos de reforma do Concílio de Trento.
Nesse sentido
o Concílio Vaticano II apresenta algo de novo: de um lado é verdade o que
afirma o Papa Bento XVI, isto é, a reforma proposta pelo Concílio Vaticano II é
uma “reforma na continuidade”. De outro lado é verdade também que se trata, pela primeira vez na história da Igreja,
de uma reforma que, com um único olhar, quer traduzir no hoje o coração
pulsante do Evangelho de Jesus, na força do Espírito Santo e no discernimento
dos sinais dos tempos, que anunciam, como afirma o Papa Francisco, não uma
época de mudança, mas uma mudança de época.
Alguns
exemplos para ilustrar: no ecumenismo a Igreja Católica renuncia à sua “forma”
entendida como absoluta; com a globalização renuncia à sua “forma” tipicamente
ocidental; e na busca de encontro com as religiões reveste-se da “forma” nova
do diálogo.
Trata-se pois
de uma reforma inédita e de grande peso, à luz do Concílio Vaticano II, para a
qual o Papa Francisco não só convidou a Igreja, mas está nela introduzindo.
No magistério
das palavras, dos gestos e das decisões do Papa Francisco, com uma boa dose de
simplificação, se podem identificar tres grandes linhas diretivas que nós
podemos exprimir como segue:
- Sínodo é o nome da Igreja
-
A verdade se faz na caridade
-
O diálogo é o caminho da evangelização
- Sínodo é o nome da Igreja: São João
Crisóstomo, Padre da Igreja, dos primeiros séculos, afirma que “Igreja e sínodo são sinônimos” porque a Igreja não é outra coisa que “o
caminhar junto” do Povo de Deus pelos caminhos da história ao encontro de Jesus
ressuscitado que vem. Esta afirmação significa tres realidades: a) na Igreja,
“como numa pirâmide invertida, o vértice encontra-se à baixo da base”; b) na
Igreja a “única autoridade” é a de Jesus e é “a autoridade do serviço”; c) que
uma Igreja sinodal é uma Igreja da escuta: “escuta de Deus até o ponto de
sentir com Ele o grito do Povo; escuta do Povo até se respirar a vontade para a
qual Deus chama”. De certa maneira a Evangelii
Gaudium é o manifesto programático desta primeira linha diretiva do caminho
da reforma.
A Comissão
Teológica Internacional está ultimando um documento que aprofunda este primeiro
caminho da Igreja, a sinodalidade. O exercício da sinodalidade, em todos os
níveis, vai se tornando credível como critério prioritário da reforma da Igreja
católica e de sua “conversão pastoral”. De fato é a sinodalidade a experiência
que, não só reconstruirá as relações dentro da Igreja, mas oferecerá também o
espírito, o estilo e o método adequados do “sair” do Povo de Deus que caminha
na história testemunhando e anunciando a alegria e a liberdade do Evangelho. “O caminho da sinodalidade é o caminho que
Deus espera da Igreja do terceiro milênio”. Foi o que o Papa Francisco
afirmou na comemoração dos 50 anos da instituição do Sínodo dos Bispos (17 de
outubro de 2015).
- A verdade se faz na caridade: trata-se da
verdade do Evangelho, a verdade testemunhada e anunciada pela Igreja não é
simplesmente doutrina, mas evento de agape,
evento que se faz no agape, no agape ele se comunica, como agape ele toca e transforma os corações
e as mentes. Entender e viver isto, é, talvez, a raiz mais profunda da reforma
que brota de modo sempre novo do Evangelho de Jesus e que hoje interpela a
Igreja. Isto não é fácil. E’ algo que passa pela cruz de Jesus, no assumir os
conflitos e no confronto com as contradições. O agape é a sabedoria (sophía) e
a força (dýnamis) do Crucificado, do
grito de abandono de Jesus.
Ao longo dos
caminhos do tempo e nas diversas circunstâncias da experiência e da vida dos
homens e das mulheres, a transmissão da verdade do Evangelho, para ser fiel,
deve ser criativa, para conservar a identidade do que transmite deve colocar-se
em escuta daquilo que o Espírito Santo diz cada vez à Igreja para alcançar e
transformar o coração dos homens (cf. Ap 2,7).
Alguns anos
atrás o teólogo Joseph Ratzinger sublinhava que “por tradição não se deve entender
uma soma de asserções bem estruturadas para serem transmitidas intactas, mas a
expressão da progressiva assimilação através da fé da Igreja, do evento
testemunhado na Escritura”, de tal modo que a fé “para permanecer idêntica deve
ser expressa em modo diverso e pensada em modo diverso”[2].
A Exortação
Apostólica Amoris Laetitia sobre o
amor na família, é o manifesto programático desta comunhão espiritual e
pastoral que toca um dos pontos de verificação essenciais da vida e da missão
da Igreja hoje: o matrimônio e a família, a antropologia da sexualidade e da
geração, a coesão íntima da família e a esperança condivisa, valores capazes de
sustentar a vida em sociedade.
- O diálogo é o caminho da
evangelização: o beato Papa Paulo VI, na sempre atual encíclica Ecclesiam Suam, afirma que o diálogo não
é um optional, ou uma tática externa
ao anúncio do Evangelho, mas é a sua substância, a sua forma.
A
Constituição Dei Verbum do Concílio
Vaticano II sobre a Palavra de Deus, quando descreve a própria revelação de
Deus em Jesus, ensina que ela é como o entreter-se e o conversar de Deus com os
homens como amigos. Assim a conversão espiritual e pastoral toca na
profundidade os corações, as mentes, as dinâmicas e as estruturas do nosso ser
Igreja. Ela nos introduz naquela dinâmica do “fazer-se um”, fazendo-se “tudo
para todos” que tem em Jesus crucificado e abandonado sua chave e seu exercício.
Em um certo
modo, pode-se afirmar que a encíclica Laudato
Sì do Papa Francisco sobre o cuidado da casa comum, é o manifesto programático
mais avançado deste terceiro caminho da reforma da Igreja.
2.
Os Caminhos
da Vida Consagrada na Igreja Hoje
Coloco abaixo
um pequeno esquema indicativo dos caminhos da vida consagrada percorridos e por percorrer ainda.
a) Caminhos já construídos:
-
Quem são os consagrados hoje na Igreja ?
. Ordo Virginum (Ordem das Virgens)
. Ordo Viduarum (Ordem das Viúvas)
. Institutos de Vida Consagrada Ativa
. Institutos de Vida Consagrada Monástica e Contemplativa (Claustral)
. Sociedades de Vida Apostólica
. Novas Formas de Vida Consagrada
-
Vida Consagrada a 50 anos do Concílio
Vaticano II
-
Constituição Dogmática Lumen Gentium sobre la Igreja, capitulo VI: os consagrados e as
consagradas são parte integrante da Igreja povo de Deus, junto com os leigos com a hierarquia.
-
Decreto conciliar Perfectae Caritatis, nn.2-4
. Seguir
Jesus na forma do Evangelho é a regra suprema.
. Fidelidade ao espírito e às intenções especificas dos fundadores e das
fundadoras.
. Participar da vida da Igreja
Local e dialogar con a cultura atual.
b) Caminhos
em construção:
-
Vinho novo en odres novos:
-
Com a força do Espírito a renovação espiritual, carismática
e institucional continuou depois do Concílio Vaticano II.
-
Existem áreas de fragilidade: alguns itinerários
formativos; a preocupação acentuada com o institucional e o ministerial em
prejuízo da vida espiritual; a difícil integração das diversidades culturais e
geracionais; un equilíbrio problemático no exercício da autoridade e no uso dos bens.
-
Quais são os odres novos da vida consagrada confiados
ao nosso cuidado hoje ? No ano da vida consagrada que acabamos de viver escolhemos
três odres para procurar responder aos desafios do momento:
. vida fraterna em comunidade
. formação (continua e inicial)
. poder e uso dos bens
- Os cinco pontos do Papa Francisco para a
vida consagrada hoje:
-
A alegria da consagração
-
A característica própria da vida consagrada é a
profecia: “despertai o mundo”
-
Especialistas em comunhão
-
Ir às periferias existenciais para superar toda forma
de auto-referencialidade
- Responder às novas e contínuas
perguntas que se levantam hoje e ao grito dos pobres
Em vista
disso, penso que a fundamentação espiritual e teológica mais coerente e
necessária para construir esse caminho que se está percorrendo é realizar a
vida pessoal, familiar, eclesial e de abertura para a humanidade à luz da
antropologia trinitária. De fato, sendo
o nosso Deus uno e trino; sendo o nosso Deus amor e misericórdia; e sendo ainda
o nosso Deus fonte de relações, podemos, com este fundamento, perguntar: então
quem é o homem, quem é a mulher, já que eles são criados à imagem e à
semelhança de Deus? À luz de minha
experiência pessoal, da experiência de muitos outros, homens e mulheres, que
também percorrem a mesma estrada de vida, e apoiado na reflexão-vida de muitos
teólogos e filósofos contemporâneos e mais antigos, proponho como um dos
caminhos em construção mais significativos para a vida consagrada, a
compreensão e a aplicação do mistério da Santíssima Trindade como fundamento da
antropologia cristã.
3. O Mistério da Santíssima Trindade como Fundamento
da Antropologia Cristã
Aprofundaremos este ponto
particularmente importante para a vida consagrada hoje, em tres momentos:
3.1. Vida Consagrada na Medida de Deus e na Medida
do Homem e da Mulher Hoje
3.2. Deus é Amor (1 Jo 4,8.16). O Homem e a Mulher
também São Amor (Gen 1,27)
3.3.
Tornar-se Pequeno, como Deus, para ser Amor, como Deus (Flp 2,5-11)
3.1. Vida Consagrada na Medida de Deus e na
Medida do Homem e da Mulher Hoje
Os consagrados e as consagradas de
vida contemplativa e também os de vida ativa não existem para ocupar-se em
primeiro lugar com as obras e as estruturas surgidas em sua história desde o
passado. Muitas vezes estas obras e estruturas hoje se tornaram pesadas e
sempre mais difíceis de serem administradas em uma situação de sempre menos
pessoal disponível e de exigências sociais e públicas cada vez mais
abrangentes. Esta parece ser a realidade de uma boa parte das ordens e
congregações religiosas, sobretudo na Europa, nos Estados Unidos, no Canadá e
na Austrália. O mesmo fenômeno, porém, começa a se acentuar também nos outros
continentes.
Como
nos pediu o Concílio Vaticano II, é necessário voltar ao sentido verdadeiro da
vida consagrada, isto é, seguir Deus, descobrir, como experiência, o seu amor,
pois Ele nos chamou através do nosso fundador, da nossa fundadora. De fato o
que caracteriza os fundadores é terem eles seguido a iluminação que Deus lhes
deu. Foi por isso que eles se realizaram, foram felizes, e construíram
monumentos de beleza e de santidade na Igreja.
De
outro lado estamos tomando consciência de que o homem e a mulher de hoje
chegaram a uma nova maturidade. São ciosos de valores como os da liberdade, da
igual dignidade, da justiça, da diversidade, da paz, ... A globalização,
facilitada pelo aperfeiçoamento da tecnologia, invadiu todos os recantos da
terra. Ao mesmo tempo, porém, somos herdeiros de fenômenos que se arraigaram em
nós como o individualismo, a perda dos valores tradicionais e universais, o
laicismo que, à fúria de combater a religião, se torna ele mesmo uma religião,
o eterno sonho do homem sem Deus, que se basta a si mesmo. No coração desse
homem e dessa mulher de hoje continua viva a ânsia de felicidade, a busca da
realização pessoal e coletiva, mesmo que seja conseguida somente em alguns
momentos fugazes.
E nós
cristãos nos apercebemos que a grande herança de luz dos milênios passados da
história da fé, embora sentida como uma grande riqueza, já não é mais
suficiente hoje nos mesmos moldes que recebemos do passado. A época mudou, as
exigências humanas mudaram, as possibilidades de vida mudaram e ficamos meio
perdidos no fenômeno cultural que hoje se processa. Voltam as tendências do
tradicionalismo e do “futurismo” na Igreja, como formas de encontrar segurança
na experiência de fé. O envelhecimento de muitas congregações, a ausência de
vocações, os numerosos abandonos da vida consagrada por homens e mulheres
consagrados em todas as idades da vida, o desacerto entre os consagrados mais
idosos e os mais jovens, o aparecimento de fundadores infiéis ao próprio
carisma como consequência de sua infidelidade ao evangelho, tudo isso, nos
questiona. Qual será, pois, a vida consagrada autêntica na medida de Deus e na
medida do homem e da mulher hoje?
3.2 Deus é Amor (1 Jo 4,8.16). O Homem e a Mulher
Também São Amor (Gen 1,27)
No
início de nosso caminho vocacional de consagrados e de consagradas nos marcou,
sem dúvida, uma experiência profunda de Deus que nos atraiu com seu amor suavemente,
ou mesmo fortemente. O que a maioria de nós não duvida é que se tratou de uma
experiência verdadeira e envolvente. Enamorados, seguimos esse chamado, no
começo, a partir de sinais por vezes simples, sem perceber quem sabe a dimensão
exigente que se mostraria depois, mas seguimos o Senhor sem medos e por
caminhos pouco conhecidos. Esse é o momento mais significativo do que
determinou nossa vida. A ele é necessário voltar com decisão para não perder a
estrada e manter acesa a chama da busca de felicidade que queima dentro de nós.
O
apóstolo e evangelista João nos assegura que Deus é amor (1 Jo 4, 8. 16). Não
se trata de um sentimento em Deus, ou de uma sua virtude, mas daquilo que
define o que Deus é: Ele é amor. Este é o seu ser, esta é sua essência, se
assim quisermos dizer. Experimentar o chamado de Deus no início de um chamado
para a vida consagrada significa experimentar a presença do amor, experimentar
a força de atração do amor, sentir a vontade de ser amor. Com toda a certeza,
nesse momento, Deus não envolveu apenas a nossa inteligência para a adesão a
uma verdade de fé, ou a nossa vontade para a adesão à moral cristã que gera
comportamentos novos. Foi, sem dúvida, uma experiência mais abrangente a que
envolveu todo o nosso ser, inclusive os afetos e nossa sexualidade.
Somente
experimentando o amor podemos compreender que Deus tenha tomado a iniciativa de
tornar-se carne, tornar-se humano, na pessoa do Filho, em Jesus de Nazaré, o
filho da Virgem Maria. E’ o Amor Aquele que vem em busca de sua criatura
afastada pelo pecado, para retomar para si o que é seu. O mistério da
encarnação do Filho tem as características do amor. E’ manifestação do amor. Com a vinda do Filho
entendemos que o amor não é solidão e sim comunhão. Jesus, o Filho de Deus encarnado,
nos revela, por isso, que Ele não vive sozinho. Ele tem um Pai que é Deus como
Ele. Ele nos revela e nos comunica também o Espírito Santo que é Deus como Ele
e o Pai. Por isso Três que são o amor não formam três solidões. Ao contrário,
os Três diferentes e bem individuados, cada um como pessoa, difere do outro, e,
ao mesmo tempo, forma com o outro uma única unidade em perfeito equilíbrio. De
fato, em Deus-Amor, unidade e diversidade não se opõem, mas são duas faces da
mesma realidade. Essa aproximação do mistério central de Deus poderá hoje
ajudar a ontologia (filosofia) e a antropologia cristãs a dar novos passos para
ajudar a cultura atual a compor, de modo positivo, as dimensões da unidade e
diversidade na experiência humana e na compreensão e experimentação da natureza
e do cosmos[3].
Por que
buscamos no mistério da Santíssima Trindade a realidade mais profunda para
abrir o caminho de uma experiência antropológica para o nosso tempo ?
Porque
os tempos são novos, exigentes, complexos, marcados pelo progresso tecnológico
que permite novas experiências humanas não possíveis antes e modificam muitos
dos parâmetros e critérios de vida que até agora usamos. A própria fé assumiu
formas da cultura de outros tempos que hoje não sentimos mais. Cresceu a consciência
da importância dos valores humanos que devem ser alcançados e não podem eles
estar em contraposição com os valores que a fé propõe. Prefere-se alcançar uma
felicidade humana possível que buscar uma felicidade futura incerta e difícil,
e isso não depende do grau de dificuldade para alcançá-la. Para nós homens e
mulheres de fé, cristãos que querem arriscar tudo pela pessoa de Jesus Cristo,
aqui está o novo desafio. Por que a nossa experiência de fé parece não nos
oferecer uma felicidade maior do que a daqueles que não seguem Jesus?
Recorremos
ainda à Palavra de Deus para fazer a passagem necessária da realidade de Deus
para a nossa realidade humana e cósmica. Voltemos à narrativa da criação assim
como nos é descrita no livro do Gênesis 1, 27-28: O Homem e a Mulher são: criatura, filho e filha, e imagem de Deus.
Criatura “Deus criou o ser humano
à sua imagem, à imagem de Deus o criou.
Homem e mulher ele os criou.
E Deus os abençoou
e lhes disse: “Sede fecundos e multiplicai-vos,
enchei a terra e submetei-a! Dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e
todos os animais que se movem pelo chão”” (Gen 1,27-28)
Deus criou o ser humano: A Bíblia
transmite a certeza de que Deus existe e de que o ser humano não é deus, mas é
criado por Deus e, por isso, é sua criatura.
O ser humano é imagem de Deus: há uma
mesma identidade entre Deus, o homem e a mulher. Hoje, depois da vinda de Jesus
Cristo, nós compreendemos que o ser humano é imagem do Pai e do Filho e do
Espírito Santo, isto é, da Santíssima Trindade. Foi o Filho de Deus quem nos
revelou e nos comunicou este grande mistério. Como Deus é amor, o ser humano
também é amor.
O ser humano é homem e mulher: estas são
as duas faces da humanidade, o masculino e o feminino. Eles são colocados em pé
de igualdade, um com o outro, e chamados a formar uma unidade de vida.
Diversos, como as pessoas da Trindade, mas chamados à comunhão de vida, como a
Trindade Santa é um só Deus.
Na criação Deus abençoou o homem e a mulher: eles são
criaturas abençoadas e, por isso, agradáveis a Deus. Na origem o homem e a
mulher são bons e foram agraciados por Deus porque nasceram de suas mãos. O
homem e a mulher foram queridos por Deus desde sua origem e a história da
salvação, narrada pela Bíblia, mostra que Deus não pode viver sem procurar e
amar o homem e a mulher. Por isso, Ele os fez fecundos. A existência de outros
seres humanos, que nascem do primeiro homem e da primeira mulher, não modifica
as características da origem, enquanto todos os homens que são chamados ao banquete
da vida, pela fecundidade dos primeiros pais, são criaturas de Deus, são homens
e mulheres, e são imagem de Deus, por Ele abençoados. Também eles, que são
frutos dessa fecundidade, são chamados a presidir a natureza, aperfeiçoando-a
com sua inteligência e conservando-a para todos.
Filho
e Filha “Com
efeito, vós todos sois filhos de Deus pela fé no Cristo Jesus. Vós todos que
fostes batizados em Cristo vos revestistes de Cristo. Não há mais judeu ou
grego, escravo ou livre, homem ou mulher, pois todos vós sois um só, em Cristo
Jesus” (Gl
3,26-28).
“Quando se completou o tempo previsto, Deus
enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sujeito à Lei, para resgatar os
que eram sujeitos à Lei, e todos recebemos a dignidade de filhos. E a prova de
que sois filhos é que Deus enviou aos nossos corações o Espírito que clama:
“Abá, Pai!” Portanto, já não és mais escravo, mas filho; e, se és filho, és
também herdeiro; tudo isso, por graça de Deus” (Gl 4,4-7).
A graça da
filiação divina é a que dá ao homem e à mulher
sua maior e única dignidade humana. Nenhum ministério, nenhum carisma,
nenhum estado de vida, constitui uma nova dignidade, de tal modo que estes são
apenas serviços a serem oferecidos aos membros do povo de Deus, todos eles
revestidos da mesma dignidade de filhos de Deus. Hoje é preciso arregassar as
mangas para modificar nossas velhas e falidas atitudes pessoais herdadas de uma
cultura contrária ao evangelho. Nós bispos, como também todos os consagrados e
consagradas, somos chamados a essa necessária mudança interior.
Chegamos a
esse conhecimento acima, sem contrariar a luz que nos chega da razão, a
respeito do homem e da mulher, enquanto somos iluminados pela fé. De fato, foi
o Filho, Jesus Cristo, quem nos revelou e comunicou que Deus é Pai e Filho e
Espírito Santo, um único Deus em três pessoas distintas.
Para
aprofundar esse mistério (realidade maravilhosa) do homem e da mulher criados à
imagem de Deus, precisamos nos aproximar reverentes da própria identidade de
Deus. Dificilmente o homem e a mulher teriam chegado ao conhecimento de Deus em
três pessoas, sem que, do alto, o próprio Filho o tivesse revelado. Hoje,
ajudados pela “sequela Christi” e pela reflexão teológica aprofundada a partir
dos documentos atualíssimos do Concílio Vaticano II, chegamos a compreender que
a vida consagrada precisará continuar a dar novos passos na direção da
espiritualidade de comunhão, cujos passos terão necessariamente que partir do
mistério que é fonte segura do caminho: a Santíssima Trindade. Um esboço do
caminho que deverá ser percorrido, como experiência eclesial, pelos consagrados
e consagradas, mas também por todos os discípulos de Jesus hoje, tendo em conta
os tempos profundamente mudados, é o que segue abaixo:
Deus é Uno e Trino porque Deus é amor (1 Jo 4,7-21). A
encarnação do Filho de Deus, Jesus Cristo, permitiu ao homem e à mulher
conhecer e experimentar o amor. A Carta de Paulo aos Filipenses (2,5-11)
explica o amor de Deus como kénosis (esvaziamento). O mistério da encarnação, a
vida de Jesus de Nazaré e o mistério pascal confirmam o caminho da revelação e
da comunicação do amor por parte de Deus como kénosis (esvaziamento). Somente
esta poderá ser a estrada do amor entre os homens e as mulheres. Por isso é
necessário começar a leitura do texto aos filipenses a partir do versículo
cinco.
Desse modo o nosso desafio para experimentar
Deus-Amor, para experimentar seu amor, passa pela reconstrução da relação com a
pessoa que está diante de nós. Sem isso, segundo Jesus, não há experiência de
Deus. Deus é um só em três divinas pessoas porque suas relações são amor: o Pai
só é pai porque tem um Filho; assim é também o Filho. O Espírito Santo é o amor
que une o Pai e o Filho. Entre nós é a experiência de relação de amor com o
outro a que permite experimentar Deus. Por isso hoje não será fugindo do outro
para se proteger que nós encontraremos e experimentaremos Deus, mas
aproximando-nos do outro, homem ou mulher, com simplicidade de coração,
dispostos a amá-lo, que nós penetraremos o mistério de Deus. Esta é uma mudança
necessária na prática da espiritualidade hoje.
Em Deus unidade e diversidade coincidem de modo
perfeito. O homem e a mulher, criados à imagem de Deus Uno e Trino são um ser
em relação de amor entre si e com todos os demais homens e mulheres. Conseqüência
disso, é que o homem e a mulher só podem construir de um modo correto sua
identidade, em relação de amor com os demais homens e mulheres. A kenosis (o
esvaziamento de si por amor ao outro) é a única maneira possível para se
experimentar a unidade entre as pessoas, sem destruir a diversidade. O amor
humano que se torna divino é capaz de amar a todos, amar por primeiro, amar
sempre, como ama Deus. O amor que se torna recíproco ao menos entre duas ou
três pessoas, gera a presença de Jesus entre elas (cf Mt 18,20). As pessoas que
realizam a experiência do amor trinitário em seus relacionamentos provam e
testemunham a felicidade verdadeira. Esta felicidade não se dá sem as condições
colocadas por Jesus: renunciar a si mesmo e tomar a própria cruz. A compreensão
nova, que ilumina este caminho é que a renúncia a si mesmo e o tomar a própria
cruz, são motivados pelo amor, como o de Jesus.
3.3.Tornar-se Pequeno, como Deus, para Ser Amor, como
Deus (Flp 2,5-11)
Para compreender o Amor e para experimentar seus
efeitos no homem e na mulher, a ponto de fazê-los experimentar a felicidade,
não é suficiente elaborar um correto
sistema de idéias, por mais bem construído que seja. O Amor é antes de mais
nada, o resultado de uma experiência repetida pacientemente com relação a Deus
e em relação contínua com o homem e a mulher. E’ preciso, porém, partir do
supremo mistério da Santíssima Trindade.
O Filho de Deus foi enviado pelo Pai para garantir ao
homem e à mulher que Deus é amor e, por isso, nunca deixou de amar sua
criatura, mas a destinou a se tornar seu filho e sua filha.
Ele, o Filho de Deus, feito homem, foi quem nos
revelou e comunicou que Deus é Pai, é Filho e é Espírito Santo. Não são três
deuses, mas um só Deus. Ele é o ser, o fundamento de todo o ser. Somente Nele
todas as coisas existem. Somente Nele o homem e a mulher existem.
Deus, porém, é também não-ser, porque o Pai não é o
Filho. O Filho não é o Pai. O Espírito Santo não é nem o Pai e nem o Filho. Em
Deus a diversidade é una, sem deixar de ser diversidade ao mesmo tempo. Em Deus
o ser e o não-ser coexistem em perfeita identidade e diversidade. O homem e a
mulher, imagem e semelhança desta única fonte verdadeira, são chamados a
exprimir, em sua realidade humana de “filhos no Filho”, o mistério escondido em
Deus (cf CIC 254).
Para intuir e viver algo desta infinita realidade nós
precisamos aprofundar o que é o Amor. A melhor maneira para fazer isso é
observar o modo de agir de Deus Pai quando envia seu Filho na encarnação do
Verbo, no seio da Virgem Maria.
O apóstolo Paulo nos vem em ajuda na Carta aos
Filipenses (2, 5-11).
Este hino cristológico nos fala de um “esvaziamento”
do Filho para poder encontrar a pequenes do homem e da mulher. Somente o Amor é
capaz de um movimento inusitado e, aparentemente, contraditório como o do Filho.
Em teologia chamamos este modo de agir de Deus “kenosis” (esvaziamento),
presente no mistério da encarnação, na vida escondida de Nazaré e de modo quase
incompreensível no mistério da cruz (paixão e morte do Senhor). Nesse percurso
é o amor de Deus que se manifesta diante do homem e da mulher do modo mais
completo e radical, chegando ao ponto do “abandono” e da morte de Jesus na
cruz. O homem Jesus de Nazaré, Filho de Deus, morre sozinho, sem receber a
resposta do Pai ao seu grito de extrema dor. Morreu sem ouvir a resposta do
Pai, sem resposta...Ficou do nosso lado mesmo no momento mais duro em que toda
sua vida e sua obra poderiam parecer um grande absurdo e ilusão. O Pai, de quem
o Filho veio, com quem o Filho habita e que amou e ama o Filho desde toda a
eternidade, deixou o Filho “sozinho”, sem intervir, em sua condição de
fidelidade ao homem e à mulher. Por isso, o Filho deixa-nos a herança bendita
de uma fidelidade a toda a prova, continuando, como única coisa que lhe resta, a
acreditar no amor do Pai. Por isso, seu último gesto é entregar nas mãos do Pai
seu espírito[4].
Ά luz deste mistério insondável de dor e de amor do
mistério pascal, a espiritualidade da unidade, ou a espiritualidade de
comunhão, nos ajudam hoje a tirar uma conclusão que pode ter efeitos de grande
profundidade em nossa vida de discípulos: se o grito de abandono de Jesus na
cruz é o momento de sua maior dor, é também o momento de seu maior amor. O
grito de abandono de Jesus pouco antes de morrer na cruz torna-se, para nós
discípulos, o modelo do mais perfeito amor. Este é, de verdade, o ato de
obediência perfeito.
Um Amor assim, vivido pelo homem e pela mulher diante
de Deus, como resposta incondicional de amor e, ao mesmo tempo, vivido com a mesma intensidade
e qualidade diante de cada pessoa humana, é capaz de fazer brotar a vida e a
felicidade lá onde ela talvez esteja se apagando e terminando. Penso
sinceramente que nós temos aqui uma realidade espiritual e humana capaz de
fazer renascer e se desenvolver a vida consagrada no meio de suas crises atuais[5].
Um
discípulo de Jesus, que ama outra pessoa na medida do Amor que é Deus, com um
Amor divino e humano ao mesmo tempo, cria as melhores condições para que o
outro, amado, experimente alegria e felicidade verdadeiras e queira também ele
fazer o mesmo caminho com o discípulo de Jesus que o amou. Quando acontece isso
entre duas ou mais pessoas, realiza-se a promessa de Jesus feita em Mt 18,20.
Entre eles, então, tem início uma comunidade verdadeira, onde se percebe a
presença de Jesus. Esta presença, atraente por si mesma, se torna
evangelizadora, e de tal modo que a comunhão se converte na condição verdadeira
e imprescindível da própria evangelização (missão), com resultados que se
tornam visíveis e surpreendentes[6].
Assim, o Amor, que é reciprocidade
entre as Pessoas da Santíssima Trindade, se faz reciprocidade entre os
discípulos, e gera a presença do Senhor entre eles. Desta forma compreendemos
como a missão nasce da comunhão e nela se alimenta. Podemos mesmo afirmar com
convicção que o Verbo se fez carne para que a carne se fizesse comunhão,
alimentada pela Palavra e pela Eucaristia. Reunimos assim, como experiência
realizada hoje na comunidade, as características da primeira comunidade de
Jerusalém: eram unidos na doutrina dos Apóstolos (o mesmo que “Palavra de
Deus”), koinonia (comunhão fraterna) e “fração do pão” (Eucaristia) (cf Atos
2,42).
O
Catecismo da Igreja Católica, citando a “Fides Damasi”[7] afirma:
“Deus é único mas não é solitário (n.254). O Amor, essência de Deus, comunhão
essencial das Tres Divinas Pessoas, é o manancial e a origem da essência do
homem e da mulher. Jesus, o Filho enviado pelo Pai, foi quem nos revelou e
comunicou este mistério. Jesus viveu desse modo entre nós, deixando-nos através
dos apóstolos os escritos de seus gestos e palavras.
Podemos
então crer na encarnação do Verbo que revelou e comunicou ao homem e à mulher o
Amor que faz dos Três comunhão. Como
para o Verbo de Deus, assim também para o homem e a mulher o caminho para encontrar
o Amor e ser o Amor é a “kénosis”, o esvaziamento de si, para ser para o outro
por amor[8].
Este
mesmo caminho foi percorrido pelo Senhor até à medida da Eucaristia. A
Eucaristia é um abismo por demais grande de esvaziamento por parte do Senhor. A
entrega deste mistério aos discípulos causou um grande escândalo. Alguns
abandonaram definitivamente o Mestre. ”O’ res mirabilis” a chamou a piedade
eucarística, porque no Calvário o Amor, que é Deus, já escondera a divindade de
Jesus para poder estar próximo de cada pessoa. Na Eucaristia o Amor esconde
também sua humanidade, fazendo-se “coisa” para poder estar perto dos seus em
todos os lugares do mundo ao mesmo tempo.
4. Vinho Novo em Odres Novos
Três Odres Novos a Serem Cuidados Hoje na Vida
Consagrada:
4.1.- Vida
Fraterna em Comunidade;
4.2.-
Formação Contínua e Inicial;
4.3.-
Experiência do Poder e o Uso do Dinheiro e das Propriedades.
O Papa Francisco, no final do ano de 2014, aprovou a realização
da Assembléia Plenária do nosso Dicastério em Roma. Os cinquenta membros
provindos dos vários países olharam para a vida consagrada a partir do
Evangelho de Marcos: “Vinho Novo em Odres
Novos” (Mc 2,22). Isto é, o vinho novo que é Jesus, que é o Evangelho, nos
dias de hoje, também para a vida consagrada, deve ser experimentado em
estruturas culturais e em estruturas institucionais novas, diferentes das do
passado. Surge, então, a pergunta: Quais são as estruturas e instituições que
não servem mais, e quais os processos que precisamos desenvolver para permitir
o nascimento de novas estruturas e instituições?
Durante todo o ano da vida consagrada (2015),
começamos a nos mover nessa direção, fortemente orientados pelas palavras e
gestos iluminadores do Papa Francisco. E’ sua a afirmação que “depois do
Concílio Vaticano II o vento do Espírito continuou a soprar com força, por um
lado levando os Institutos a atuar a renovação espiritual, carismática e
institucional que o próprio Concílio pediu; por outro lado suscitando no
coração de homens e mulheres modalidades novas de resposta ao convite de Jesus
para deixar tudo e dedicar a própria vida ao seguimento Dele e ao anúncio do
Evangelho”.
O Papa Francisco, porém, chamou também nossa atenção
para certas áreas de fragilidade da vida consagrada: “a fragilidade de certos
itinerários de formação; a preocupação desmedida com as responsabilidades
institucionais e ministeriais em detrimento da vida espiritual; a difícil
integração das diversidades culturais e geracionais; um equilíbrio problemático
quanto ao exercício da autoridade e quanto ao uso dos bens”. Para responder ao
convite do Papa Francisco a “não ter medo de deixar os odres velhos” para
assumir os novos, a CIVCSVA propõe para a vida consagrada o cuidado em
particular de três âmbitos, ou, com a linguagem do Evangelho, de três odres: a
vida fraterna em comunidade; a formação contínua e inicial; a experiência do
poder e o uso do dinheiro e das propriedades.
4.1. Vida
Fraterna em Comunidade
O primeiro odre da vida consagrada
que precisa hoje se renovar, depois da primeira clara chamada amorosa por parte
de Jesus e da amorosa resposta de cada um de nós, é o da vida fraterna em
comunidade. No novo momento em que vivemos, somos chamados a contribuir com o
cuidado e a regulamentação das diversas formas de estruturas de comunhão e de
comunidades na vida consagrada. Cada pessoa consagrada e cada comunidade de
consagrados e de consagradas são hoje chamadas a fundamentar sua vida no
mistério e na missão de Deus-Trindade, no Amor. Isto é o mesmo que dizer: somos
chamados a uma intensa vida de comunhão, sem a qual nossa união com Deus se
torna mentirosa.
Os consagrados e as consagradas,
sendo concretamente esta realidade trinitária, são chamados a dispor-se à saída
missionária, de acordo com o próprio carisma, para ir em direção a cenários e
desafios novos, especialmente em direção àquelas periferias que mais tem
necessidade da luz do Evangelho. Isto comporta a previsão de estruturas
comunitárias que sejam mais missionárias e atividades mais dinâmicas e abertas
para esta saída.
A crescente comunhão deve levar à
crescente consciência da “intimidade itinerante” do consagrado e da consagrada
com Jesus (EG 23). Ele e ela só podem viver sua consagração se for de modo permanente
como discípulos de Jesus durante toda a vida.
E’ a necessidade permanente de
tornar-se discípulos que fundamenta a atuação da “formação contínua”. Por isso,
tal caminho será realizado cultivando a escuta da Palavra do Senhor através da
“lectio divina”, para então colocar na vida a mesma Palavra; deixando-se formar
pela liturgia, pelo ano litúrgico e pela oração pessoal. E ainda: será
necessário criar as condições para um correto discernimento comunitário da
vontade de Deus, habituando-se assim com a circularidade das relações. “A
história nos ensina, diz o Papa Francisco, que as boas estruturas servem quando
existe uma vida que as anima, que as sustenta e que as avalia” (EG 26).
Além disso, caminhamos sempre mais em direção a
comunidades multiculturais e interculturais. A presença de várias culturas nas
comunidades é um dom de Deus para a vida consagrada e para a Igreja, mas nem
sempre produziu comunhão intercultural, tanto na formação como na missão. Para
que isso aconteça, cada um precisa ser sujeito livre e responsável pelo próprio
dom e, ao mesmo tempo, aberto ao dom do outro. O que está à frente da
comunidade precisa saber motivar e provocar a convergência das diversidades em
direção à sinodalidade, à sinergia, à corresponsabilidade. O olhar
contemplativo recíproco, o desejo de construir juntos a Igreja e a
hospitalidade solidária devem se tornar fermento de diálogo e de confiança em
um mundo onde falta acolhida e reciprocidade fraterna.
4.2. Formação Contínua e Inicial
O Papa
Francisco afirmou: “ “Vinho novo” são os jovens que pedem para entrar na vida
consagrada. “Odres novos” são as estruturas de acolhida e de formação, inicial
e permanente, afim de que aquele vinho se torne “vinho generoso capaz de
revigorar a vida da Igreja e alegrar o coração de muitos irmãos e irmãs”.
A formação é
a ação do Pai que, a partir da nossa conversão, forma em nós o coração do
Filho, pela potência do Espírito Santo. Por isso se faz necessário que a
formação seja integral (humana, intelectual, teológica e espiritual), que tenda
a formar uma pessoa consistente em seu querer (íntegra e “docibilis”, isto é,
que permite ser trabalhada), através de um modelo de integração, afim de que o
consagrado e a consagrada tenham “os mesmos sentimentos de Cristo” (Flp 2,5; VC
70ss).
De modo
particular a formação precisa ser nutrida por um sábio discernimento vocacional
e mostrar-se atenta à área afetiva e sexual, com um método formativo bem
integrado com as dimensões espiritual e psicopedagógica. Os recentes escândalos
nessa área expõem falhas objetivas no caminho percorrido.
A
“docibilitas”, ou o “deixar-se trabalhar por Deus” deve se tornar aquisição
também dos formadores e das formadoras por toda a vida. Por isso nós pedimos
que seja prevista na “Ratio Institutionis”, isto é, no “programa formativo” a
obrigação de preparação dos formadores através de percursos de formação que
proporcionem uma preparação integral daquele ou daquela que acompanha a
formação. Isto deverá ser feito por uma formação não somente técnica, através
das ciências humanas, de acordo com uma antropologia cristã, mas também não
somente espiritual.
Naturalmente
o formador precisa ser uma pessoa suficientemente madura, capaz de integrar em
si as duas dimensões e colocar-se em posição de escuta em seu confronto
constante com a cultura dos jovens.
Papel específico
da formação inicial é a “docibilitas”, isto é, o comportamento da “pessoa que
aprendeu a aprender da vida por toda a vida”. “Docibilis” é o “vir ob-audiens”,
isto é, o que procura Deus em todas as coisas e se dispõe a deixar-se formar
por sua mão, na missão e na oração, inserido no contexto da Igreja Particular,
na fraternidade – “sororidade” e na “periferia”, nas coisas previstas e nos
imprevistos da vida, nos sucessos e nos insucessos, em todas as estações da
vida. Neste sentido não pode ser apenas o noviciado a formar o consagrado. E’ a
própria vida, em cada um de seus momentos e circunstâncias a que se torna
mediação misteriosa da mão do Pai, do
nosso único Pai formador.
Nosso desejo
é que cada Instituto assuma com seriedade e coerência a formação contínua.
Precisamos promover uma cultura da formação contínua nas suas duas dimensões
essenciais: a ordinária, que acontece dia após dia, em cada instante, cujo
responsável é a pessoa no contexto de sua comunidade; a dimensão
extraordinária, que acontece através de cursos de atualização, ou em momentos
de dificuldades particulares do consagrado (a), sob a responsabilidade de próprio
Instituto. Para tal fim pedimos que se considere a possibilidade de dar vida a
uma estrutura, isto é, a uma comunidade de consagrados e consagradas que assuma
emconjunto o que se refere à formação contínua, para ajudar o caminho das
situações ordinárias e extraordinárias da vida como são as crises, as passagens
de idade, os novos encargos e outras muitas dificuldades.
À luz destas
exigências da formação contínua e inicial, se faz necessária uma atualização do
documento “Potissimum Institutioni”, Instrução da Congregação para os Institutos
de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica de 2 de fevereiro de 1990,
sobre as orientações para a formação na vida religiosa.
4.3. Experiência do Poder e o Uso do Dinheiro e das
Propriedades
Trata-se do ensinamento do Evangelho a respeito do
governo e da economia.
Em 2008 a CIVCSVA publicou uma Instrução muito
oportuna, nesse sentido, a respeito da autoridade e da obediência: O Serviço da Autoridade e a Obediência,
Faciem tuam, Domine, requiram.
A pedido do
Papa Francisco a CIVCSVA realizou em março de 2014, um Simpósio Internacional em
Roma com o título A Gestão dos Bens
Eclesiásticos dos Institutos de Vida Consagrada e das Sociedades de vida
Apostólica a Serviço do “Humanum” e da Missão na Igreja. Um novo
Simpósio sobre o assunto está sendo preparado em Roma para concluir este
trabalho, com a participação de todos os interessados.
A respeito de governo e economia é necessário abrir
espaços de participação. A Exortação Apostólica “Vita consecrata” afirmou que é
“urgente dar alguns passos concretos, a partir da abertura para as mulheres de espaços de participação em vários
setores e em todos os níveis, também nos processos de elaboração das decisões,
sobretudo naquilo que se refere a elas (VC 58). Respondendo a essa orientação
nosso Dicastério assumiu mais mulheres e está revendo os valores dos salários
que normalmente é mais baixo que o dos homens.
Um exame de consciência sincero em nossos Institutos a
respeito da economia, do uso dos bens e das propriedades, poderá nos ajudar a
discernir se de fato estamos servindo a Deus ou ao dinheiro. Uma mentalidade
capitalista pode muito bem ter entrado em muitas de nossas comunidades a ponto
de acharmos que sem o dinheiro ou os bens não podemos evangelizar. Nesse caso
será necessário retomar nas mãos as instruções que Jesus mesmo dá aos seus
discípulos para que possam partir para a missão.
Com relação a autoridade e a obediência há muito que
modificar em nossa experiência de vida consagrada a partir do Evangelho levado
a sério. O batismo nos deu a todos os cristãos uma só dignidade, a de filhos de
Deus. Para nenhum discípulo de Cristo (cardeal, bispo, padre, diácono,
consagrado, casado, diretor, professor, reitor, profissional, agricultor,
artista, ...), há uma outra dignidade. Somos todos irmãos e irmãs, filhos do
mesmo Pai. Por isso quem tem uma autoridade na Igreja não é maior do que os
outros; não possui uma dignidade maior do que os outros. E a consequência dessa
verdade é que para usar de autoridade e para obedecer, antes é necessário ser
irmão, irmã de verdade. Da mesma forma o carisma de um fundador não está apenas
num superior ou no seu conselho, mas está em todos os membros daquele
Instituto. O autoritarismo esmaga as pessoas e a obediência sem o esforço de
comunicar a luz de Deus, que está também em quem obedece, infantiliza as
pessoas. Sou chamado a obedecer sim, como último gesto que manifesta minha fé,
mas não estou dispensado de dar a quem tem a autoridade a luz de Deus que está
em mim. Muitas vezes parece mais fácil nos omitir para não criar complicações
ou para evitar perigos. Mas isso não corresponde a uma experiência de um discípulo
do Senhor.
Com referência aos Institutos masculinos mistos
(compostos de membros irmãos consagrados e de sacerdotes) é preciso lembrar as
palavras do Papa Francisco: “o sacerdócio ... pode se tornar motivo de
particular conflito se se identifica demais a potestade sacramental com o
poder” (EG 104). Por isso a CIVCSVA levará adiante o trabalho para o
reconhecimento da natureza específica dos Institutos “mistos” e do exercício da
autoridade na sua estrutura jurídica.
Ainda com relação ao poder, ou à autoridade, a pedido
do Papa Francisco, estamos preparando um texto com a finalidade de reescrever o
documento “Mutuae Relationes”, que se refere às relações entre bispos e
Institutos de vida consagrada. No centro do novo documento, cujo primeiro
esquema foi preparado pela CIVCSVA, juntamente com a USG (União dos Superiores
Gerais) e a UISG (União Internacional das Superioras Gerais), estão, a pedido
do Papa Francisco, a Espiritualidade de Comunhão e os duas dimensões
coessenciais da Igreja, isto é hierarquia
e carismas. Com esta nova luz o novo documento alargará o horizonte das relações
em todas as direções.
Com relação ao patrimônio e a administração dos bens
será necessário direcioná-los e organizá-los de tal modo que nossa pobreza
testemunhe uma “Igreja pobre para os pobres”. Para isto é necessário partir do
conhecimento do contexto econômico em que vivemos. É necessário organizar a
economia com profissionalismo e transparência. É necessário afirmar a igualdade
e participação de todos os membros. É necessário definir as estruturas de
corresponsabilidade na comunhão. É necessário garantir a formação dos ecônomos
e das ecônomas. É necessário alargar as áreas de partilha dos bens desde as
comunidades até se alcançar o horizonte global das mega estruturas.
Conclusão
Colho,
para finalizar, alguns pontos do caminho que fizemos para que sejam estímulo
positivo para o nosso compromisso de consagrados e consagradas.
A
experiência de Deus como Amor e Misericórdia precisa voltar a ocupar o centro
da vida de cada consagrado e consagrada, como de nossas comunidades. Por isso, o
primeiro cuidado no âmbito da formação e no dia a dia da comunidade deverá ser
com o discipulado, com o seguimento de Jesus na forma do evangelho. É nesse húmus que se insere a concretização do
carisma do fundador ou da fundadora de modo a espelhar hoje a luz por eles
recebida de Deus e confirmada pela Igreja. A beleza de cada carisma deverá hoje compor um
caminho de comunhão com os demais carismas, para que seja percebido como uma
flor da Igreja que se insere no conjunto das muitas flores, somando sua beleza
no mesmo jardim da Igreja.
Será
preciso construir pacientemente a vida das comunidades concentrando todas as
forças em viver a Palavra de Deus para depois comunicá-la aos irmãos e irmãs em
forma de experiências vividas.
É
preciso caminhar, mesmo que seja com uma certa
dificuldade, de uma espiritualidade individual para uma espiritualidade
comunhão (coletiva), reconstruindo as relações interpessoais à luz do mistério
da Santíssima Trindade. E assim criar e
assumir, no espírito de comunhão, as estruturas de comunhão, que passam através
dos conselhos nos vários níveis eclesiais e carismáticos de nossas famílias
consagradas.
É necessário
ainda aperfeiçoar pessoalmente a experiência dos conselhos evangélicos de
pobreza, castidade e obediência, que deverão, antes de tudo, exprimir a liberdade
dos filhos de Deus. A esse respeito a Exortação Apostólica Vida Consagrada nos convida a redescobrir sua dimensão trinitária.
Esta
nova luz, proveniente da construção dos odres novos, nos permite entrar e saber
permanecer nas chagas pessoais de nossas comunidades, da Igreja e da humanidade,
com o mesmo espírito de Cristo que entra nas chagas da humanidade e não
titubeia em entregar sua vida, passando pelo momento extremo do grito de abandono,
medida do amor mais completo.
Por
último: crer no cêntuplo que o Senhor nos dá nessa vida e na vida eterna nos
permite viver com leveza nossa consagração e voltar a sorrir em nosso esforço
de coerência, como expressão autêntica de nossa felicidade. Isso nos leva a simplificar
o caminho dando todo o valor possível ao momento presente de nossa vida porque é o único de que verdadeiramente dispomos.
Obrigado, irmãs e irmãos pela escuta e
acolhida.
[1] A análise aqui desenvolvida tem por base o
texto “Papa Francesco e la riforma della chiesa cattolica”, apresentado por
Piero Coda em Rocca di Papa (Roma), no Centro do Movimento dos Focolares no dia
05.06.2016. A tradução é minha.
[2] J.Ratzinger, Natura e compito della teologia. Il teologo nella disputa contemporanea storia e dogma,
tr.it. Jaca Book, Milão 1993, pp.122-123. A tradução portuguesa é minha, a
partir do texto italiano.
[3] MORICONI B. (coordenador), Antropologia Cristiana. Bibbia, Teologia,
Cultura, Città Nuova, Roma, 2001.
[4] Cf. São João Paulo II, NMI 37; CIVCSVA,
Caminhar a Partir de Cristo, 27.
[6] “Na vida de comunidade também se deve tornar de algum modo palpável que
a comunhão fraterna , antes de ser instrumento para uma determinada missão, é espaço teologal, onde se pode
experimentar a presença mística do Senhor ressuscitado (cf Mt 18,20) (cf S.Basílio, As
Regras Mais Breves, q.225: PG 31, 1231). Isto verifica-se graças ao amor
recíproco de quantos compõem a comunidade ... “ (VC 42 § 3; cf 72).
[8] LONGHITANO T., Vita Trinitaria e Kénosi, Urbaniana University Press,
Roma 2013; CODA P., L’altro di Dio, Rivelazione e Kénosi in Sergej Bulgakof,
Città Nuova, Roma 1998; MITCHELL D.W., Saggio sulla Kenosis cristiana
nell’ottica del dialogo interreligioso, Nuova Umanità XXV (2003/3-4) 147-148,
pp.457-502.
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