Por ocasião da 24ª
Assembleia Geral Eletiva da CRB Nacional, a assessoria de comunicação conversou
com biblista e religiosa da Congregação das Franciscanas de São José e membro
da Equipe Interdisciplinar da Conferência, Irmã Zenilda Petry. Ela versou sobre
o lema que permeou as reflexões do evento, fundamentado no livro do Profeta
Isaías "Eis que eu estou fazendo uma coisa nova" ( Is 43, 19).
Qual foi o
tema, Irmã, que vocês trabalharam?
Irmã
Zenilda Petry – Foi o lema da
Assembleia: "Eis que estou fazendo uma coisa nova. Será que vocês não
percebem?".
A senhora
trabalhou a parte espiritual. Como?
Irmã
Zenilda Petry – Padre Thomaz
Hughes, svd e eu ficamos encarregados da fundamentação bíblica do lema. A mim
coube mais rezá-lo e Thomaz abordou a questão bíblica. Eu li todo o segundo
Isaias e busquei o sentido mais místico, orante, novo. Observei o tradicional e
vi que os levitas pobres foram elaborando uma coisa nova, após a desconstrução
do estabelecido; foi muito interessante a leitura de Isaias 40 a 75. Fiz uma
leitura mística, da espiritualidade do texto. Foi muito agradável para mim.
Quantas frases
neste livro da consolação! Fiz a leitura, observando qual imagem de Deus emerge
neste contexto. A primeira imagem não é de um Deus poderoso, vingador, mas de
um Deus consolador, aquele Deus que carrega nos braços, consola, que reanima os
desanimados.
Outro elemento,
são as muitas coisas novas que vão surgindo. O que mais destaquei foi um novo
rosto de Deus que emerge nesta experiência de caos que foi o exílio na
Babilônia. Se você fizer uma leitura de Isaias olhando os títulos, descobre
muito: o Deus Redentor, Consolador, Goel, padrinho. Eles farão da experiência
da Babilônia uma nova experiência de Deus. E é neste contexto que estão os
cânticos do servo sofredor.
O povo
escolhido que seria uma raça poderosa, com a terra, cai. Como vai surgir uma
nova experiência?
Irmã
Zenilda Petry – Surgirá o servo,
o servo de Javé. "Eu te constituí meu servo, meu discípulo". "O
Senhor me deu a língua de discípulo para que eu leve aos desanimados uma
palavra de consolo."
Podemos
afirmar que isso já é o resultado da escuta da coisa nova?
Irmã
Zenilda Petry – Se você quiser
trazer para os nossos dias, já é o resultado, mas eu penso que não dá para
medir exatamente as coisas. É todo um ambiente, toda uma dinâmica, toda uma
experiência que vai se fazendo no meio deste caos. O exílio da Babilônia durou
de 587 a 538. Alguns dizem que o Segundo Isaías estaria sendo elaborado em
torno de 30 a 40 anos depois da derrocada, da queda. Durou de 40 a 50 anos de sofrimento,
de desilusão, de desolação. Foi um longo processo para se chegar a isso. Talvez
os primeiros que foram para o exílio não existissem mais. Então é um processo
de elaboração, de experiência, de caos e isso aparece até nos Salmo 136 (137):
"Junto aos rios da Babilônia nos sentávamos chorando". Eles sofreram
muito com isto tudo. Talvez muitos não superaram esse sofrimento, nem todos
fizeram a travessia para o novo. Mas no meio destas cinzas, deste caos, o grupo
dos levitas, o grupo dos pobres de Javé, se abriram e começaram a perceber que
algo novo estava acontecendo. Uma experiência nova, que surgiu no meio dos
pobres. Dá vontade de fazer recordação de Ezequiel, da imagem dos ossos secos:
"Vi um imenso vale de ossos secos". De repente, o profeta é convidado
a profetizar. Ele clama para que o Espírito venha sobre o vale de ossos secos.
É um novo espírito que começa a emergir.
É um novo
que emerge no meio dos pobres. Você acha que isto provoca a Vida Religiosa?
Irmã
Zenilda Petry – Veja. O hino que
o Frei Susin elaborou para a Assembleia diz: "Eis que estou fazendo uma
coisa nova, à luz da madrugada". Eu fiz uma provocação para a Assembleia.
Eu disse que esta coisa nova tem tensões. É a partir da própria experiência. Em
Curitiba,por exemplo, a luz da madrugada chega, quando o inverno é frio, a
gente não quer sair debaixo das cobertas. No inverno, à luz da madrugada, é
muito difícil de ser contemplada. A gente prefere ficar na zona de conforto em
que se está. Este é um risco, neste inverno da Vida Religiosa. Fala-se em
crise. Talvez nem todos e todas da Vida Religiosa estejam no inverno, mas eu
creio que boa parte dos consagrados estejamos nesta estação e aí não
conseguimos perceber a luz da madrugada. Por que a luz de conforto tem nos
deixado presas/os. Se não sairmos da zona de conforto não veremos a luz da
madrugada. Provavelmente se as mulheres não tivessem ido de madrugada ao
sepulcro não teriam feito a experiência que fizeram. Eu creio que a experiência
dos pobres nem toda Vida Religiosa consegue perceber. É uma provocação. O
profeta Isaías diz literalmente: "Eis que estou fazendo uma coisa nova.
Ela está brotando agora e vocês não percebem?".
Acho que nesta
frase está uma denúncia, também atual. "Vocês da Vida Consagrada não são
capazes de enxergar coisas novas que vem?" É preciso sensibilidade... Há
até cataratas que nos impedem de enxergar.
Que
inverno é este que me deixar ficar debaixo do cobertor?
Irmã
Zenilda Petry– Estes dias eu
ouvi algo de uma pessoa leiga que me deixou preocupada. Ela dizia que a nossa
vida religiosa deixa-se engolir pela ideologia neoliberal. Nos deixamos trair
por ela. A ideologia neoliberal está diretamente oposta ao Evangelho. Todo o
nosso modo de pensar gera os pobres. Nós nos deixamos seduzir pela ideologia
neoliberal.
Existem poucos
missionários na Amazônia. Há quem diga que uma das razões são as seduções do
sistema neo-liberal como as novas tecnologias e outros...
Irmã
Zenilda Petry – Penso que a
sedução do neoliberalismo é uma espécie de cogumelo de bomba atômica que penetrou
o nosso ser. Há um outro aspecto. A Amazônia é uma das missões mais onerosas.
Dom Erwin disse certa vez que às vezes levamos até 20 horas para chegar num
local e lá só tem cinco famílias. E a tentação da produção nos faz pensar: é
uma missão muito onerosa, cara e as Congregações estão empobrecendo e a Igreja
não tem recursos para estas missões. Mas há vida religiosa muito despojada.
Dormir numa cama ou numa rede, em qualquer lugar não é problema. Você viaja em
estradas esburacadas, perigosas. Tem que ter muito despojamento, fé e enfrentar
a solidão. Mesmo que tenha poucos religiosos, há. Enquanto houver religiosos
lá, continuo acreditando. Quem não vai, sai perdendo.
Vida
Religiosa em processo de transformação. Vale a pena refletir um tema como este
nesta Assembleia?
Irmã
Zenilda Petry – A vida está e
necessita de renovação. Não tem como fugir. Ou a Vida Religiosa entra num
processo de transformação espiritual, religiosa, de obras, de missão, de
relações, até de civilidade ou não tem mais razão de ser. Somos uma realidade
social religiosa neste mundo, não aéreas. O mundo está num processo
aceleradíssimo de mudanças. Claro que não é uma Assembleia que alcança isso. A
temática precisaria de um seminário, outros momentos, um bom tempo para ser
discutido, dentro deste país "em suspensão". A Igreja está com muita
esperança, mas neste contexto de um "país em suspensão". É um tema
que é um processo. Não estamos no fim da luz do túnel. Talvez na curva.
Neste
contexto do Brasil "em suspensão", como se dá o profetismo na vida
religiosa?
Irmã
Zenilda Petry – Creio que,
se nós da Vida Religiosa, assumirmos a vivência do Evangelho, se formos homens
e mulheres, realmente consagrados ao seguimento de Jesus de Nazaré, aquele
Jesus encarnado naquela realidade que é referência para todos nós, se formos
pessoas coerentes com aquilo que professamos publicamente, a profecia não
precisa ser programada, ela se dá naturalmente. A nossa coerência, a nossa
opção de vida, se conseguirmos ser pessoas que se deixam conduzir pela Palavra
de Deus, inspirada pelo Espírito e encarnada na realidade, a profecia emerge, é
decorrente. Profecia não é uma opção que faço. É um dom decorrente da
coerência. Profecia não é programada. Os outros é que vão dizer se você é
profeta ou não. Normalmente o profeta nunca se reconhece profeta. A Vida
Religiosa não vai se programar ser profetisa. Precisa ser coerente com sua
opção.