AGE – CRB – Brasília
12/07
Frei Luiz Carlos Susin
OFMCap.
Introdução: Qual olhar, qual horizonte?
Na Evangelii Gaudium (EG),
programa de pontificado do papa Francisco, há uma salutar indicação: ao
examinar o contexto em que somos chamados a viver, “é habitual hoje falar-se de
um ‘excesso de diagnóstico’, que nem
sempre é acompanhado por propostas resolutivas e realmente aplicáveis”(EG 50),
e depois de chamar a atenção para a inútil pretensão de se ter um olhar
“supostamente neutro e asséptico”, o papa fala de um “olhar pastoral”, que
comporta um “discernimento evangélico” já implícito no próprio diagnóstico. Se
vamos estender nossa visão até o horizonte da era axial ou pré-axial, ou ainda
até o paleolítico ou talvez, em escala ainda maior, até o horizonte do
surgimento da vida ou do planeta, ou mesmo até os mais de treze bilhões de
anos-luz do universo, o nosso interesse está aqui e agora, nesta geração, nesta
vida religiosa consagrada e nesta Igreja, em nossa vocação e missão neste mundo
junto aos nossos contemporâneos.
Talvez possamos começar constatando que a Vida Religiosa Consagrada
(VRC) está para a Igreja e para o mundo como as abelhas para a ecologia: representa
a condição espiritual e humana a mais sensível no seio da Igreja e do mundo.
Nesse sentido a delicadeza espiritual poderia ser vista também como algo
extremamente frágil, que precisa de todo cuidado se quisermos ter de seu mel
espiritual. Ou ainda outra metáfora: a VRC é como a vida das borboletas,
extremamente sensíveis à atmosfera em que vivem, inclusive em suas cores. Mas
sabemos do “efeito borboleta”, que com o bater de asas sobre o continente pode
causar uma tempestade no oceano. Isso é realmente possível em sistemas abertos
e dinâmicos, com doses de caos e de incerteza, e isso supõe energia. Ora, a VRC
pode até ser comparada à borboleta, delicada e frágil, mas ao mesmo tempo, em
situações de caos e incerteza, desencadeadora de imensa energia criativa. É
nesse sentido que Paulo VI expressou o maior e mais intrigante elogio à VRC:
Quem é que não avalia a
imensa quota-parte com que eles têm contribuído e continuam a contribuir para a
evangelização? Graças à sua consagração religiosa, eles são por excelência
voluntários e livres para deixar tudo e ir anunciar o Evangelho até as
extremidades da terra. Eles são empreendedores, e o seu apostolado é muitas
vezes marcado por uma originalidade e por uma feição própria, que lhes
granjeiam forçosamente admiração. Depois, eles são generosos: encontram-se com
frequência nos postos de vanguarda da missão e a arrostar com os maiores
perigos para a sua saúde e para a sua própria vida. Sim, verdadeiramente a
Igreja deve-lhes muito! (EN 69)
E isso tudo pode ser resumido num exemplo entre os tantos que formam a
“nuvem de testemunhas” (cf. Hb 11) em torno de Cristo: a Ir. Dorothy Stang, de
fala mansa e sorriso luminoso, que empoderou os humildes e fez tremer os
poderosos no coração da Amazônia, mártir e anjo dos povos da floresta. Deste
contexto paradoxal de VRC alargamos aqui nossa análise para o contexto da
Igreja e do cristianismo no mundo contemporâneo, mas hoje precisamos alargar do
cristianismo para as religiões, para as múltiplas, grandes e pequenas, tradições
religiosas, neste tempo em que estamos testemunhando uma mudança de época que
afeta globalmente tudo e todos em todos os campos, que tem muito de caos e de
criatividade, de perigo e de desafio. A religião é também a abelha e a
borboleta, frágil e poderosa, delicada e com energia para destruir e construir.
1. A religião nos ventos do mundo e do
espírito
Se observarmos de longe, podemos concordar com os analistas que detectam
uma crise de religião que só pode ser comparada à passagem das religiões da era
pré-axial, tribal e sacrificial, para a era axial, mais universal, ética e
compassiva. Isso significaria que a crise atual está fazendo desmoronar a
religião, por grandes e veneráveis que sejam as tradições religiosas – e quanto
maior também maior é o ruído do desmoronamento. A atual crise abrangeria o fim
de um período religioso que começou no neolítico, um horizonte longíssimo. Nesse
sentido o avanço da secularidade estaria indicando uma era pós-religiosa. E
nessa escala não temos praticamente nada a fazer.
Mas se observarmos o nosso tempo um pouco mais de perto, como uma
crise de racionalidade teórica e instrumental, é isso que se aplica também à
religião e à Igreja: crise na solidez do discurso sobre Deus e sobre a
existência mesma da religião, da sua relevância e utilidade.
Já se observarmos o nosso tempo como uma crise de racionalidade
simbólica e emocional, também as tradições religiosas estão afetadas pela babel
das linguagens e das emoções, dando lugar a uma criatividade religiosa às vezes
exótica, sincrética e líquida, ou melhor, vaporosa e fluída, reduzidas
frequentemente à emoção e à estética, mas com reações às vezes fundamentalista
e dura.
Finalmente, se observarmos o nosso tempo como crise de posturas éticas
e da moral estabelecida, sem princípios firmes e universais acreditáveis, nós
constatamos consternados que a violência contida pelos sistemas fechados de
comportamentos rompeu-se deslizando até nos espaços mais delicados da prática
religiosa para a violência e o abuso ético seja na forma de abuso afetivo e sexual,
de estelionato econômico descarado, de abuso espiritual na hermenêutica
fundamentalista e intolerante, etc.
Em conclusão, nada do que é crise humana, social, deixa de afetar a
forma da religião atingindo seu coração: onde está Deus em tudo isso? Onde
encontrar o mel da abelha e a delicada energia da borboleta que é a religião em
nosso tempo?
2. Traços de religião hoje.
Leandro Karnal, historiador e conferencista do momento, sugere que há
três teologias sustentando três formas de religião hoje: 1. A teologia do
empreendedorismo; 2. A teologia da prosperidade; e 3. A teologia da autoajuda.
Para os mais fortes, a primeira forma de religião, o empreendedorismo:
ser proativo, crer com audácia no próprio carisma, ler, participar e promover
cursos e exercícios de liderança, de coordenação de grupos, de motivação,
eficácia e produtividade. Saber treinar, comandar, criar uma empresa, ter
sucesso e reconhecimento como Coach ou
como Promoter, enfim, dizendo na
língua sacra desta religião, habilitar-se em coaching. A teologia do empreendedorismo pode ser identificada,
mais perto de nós, com o que o papa Francisco tem chamado de neopleagianismo, inclusive eclesiástico,
e que é hoje uma grande tentação da VRC: reduzirmo-nos a administradores do que
temos como obras, já que estamos reduzidos em número – e dê-lhe coaching com verniz de eficácia da
missão.
A segunda, a religião da prosperidade, para os que têm coragem de
investir, de se jogarem nas relações de crédito, na sagacidade de lidar com o
dinheiro como um sacramento, “sinal eficaz da graça”, pela maravilha do acúmulo
de capital, desde a compra de eletrodomésticos, o carro, etc; pela confiança no
emprego garantido, na renda financeira, finalmente no acesso ao consumo
abundante, em sintonia com o sistema capitalista como religião, segundo o célebre
escrito de Walter Benjamin de 1940, e ganhando assim no sistema a sua
autoestima.
Mas estas duas formas de religião “inculturada” e sincretizada com o
mercado e o dinheiro são sonho para muitos e realidade para poucos, parecido
com o sonho adolescente de ser um jogador de sucesso. A corrupção e o fracasso
são os seus infernos.
A maioria dos mortais, hoje, se devota à terceira forma, ao fervor da
autoajuda, confessando ao menos implicitamente sua fragilidade e depressão ao
invés da sua audácia e heroísmo, e buscando as energias cavadas do abismo e do
caos de suas carências para torna-las
criativas e conseguir equilíbrio e serenidade, finalmente a paz. Assim, se
experimenta o poder do milagre ou do pensamento positivo que faz milagres, só
falta sair voando. Mas o mar de livros de autoajuda promete levantar do caos da
depressão e sair voando. Ao menos para os que escrevem os livros de autoajuda.
3. A sacralidade do indivíduo e a dissolução
da sacralidade do laço social.
O que há de comum, no entanto, em todos estes fragmentos de práticas
rituais, de dogmas e de mandamentos, mesmo secularizados, é a sacralidade do
individuo.
Max Weber considerou a religião como elemento estruturante de uma
sociedade em sua totalidade, a religião como sendo não só expressão mais alta,
mas alma da cultura e da sociedade. E diante da interpelação sobre a sociedade
moderna e secular, sem referência à religião tradicionalmente estabelecida,
indicou para a crescente sacralidade do indivíduo, sacralidade em torno da qual
se fortaleceu um consenso impossível de ser contestado, que se tornou base da
sacralidade dos direitos humanos e de todos os avanços civilizatórios e
humanitários dos últimos tempos.
De fato, o que importa, no coração de todo o sistema de religião, é a
pergunta pelo sagrado, por aquilo que é fundante, que merece tal respeito a
ponto de ser intocável. E o sagrado intocável, nos últimos séculos, é o
indivíduo. Embora a sacralidade do indivíduo tenha uma forte raiz na tradição
cristã da santidade da “pessoa”, onde foi que erramos para passar ao
individualismo exacerbado de nosso tempo e às situações dramáticas,
frequentemente trágicas justamente dos indivíduos: de solidão, depressão,
autodestruição, desproteção, em que vencem os poucos mais fortes e mergulha na
insignificância a maioria perdida por falta de reconhecimento e acolhimento?
A afirmação do indivíduo se deu, no entanto, à medida que, em nova
situação urbana, na cidade moderna, o laço social foi perdendo sua sacralidade
e se flexibilizou, se rompendo e se fragmentando, mergulhando em crise sem
precedente o sentido tradicional de comunidade e de pertença. O título do
capítulo sobre a análise de nosso tempo na EG
não podia ser mais certeiro: “Na
crise do compromisso comunitário”.
Na origem patrística do famoso axioma “fora da Igreja não há salvação”
há uma boa razão se pensarmos que isso na verdade significava “fora da
comunidade não há salvação”. A comunidade, no caso a Igreja, era como a arca de
Noé em meio ao mar de tribulações, e os indivíduos sozinhos se afogariam em
pouco tempo. Este é um paradoxo de nossos dias: o indivíduo sagrado, portanto
intocável e inviolável, continua a sofrer violações. A bandeira dos direitos
humanos por si só é incapaz de defender o indivíduo se não erguer a bandeira
dos direitos de vida em comunidade e da coragem de se entregar a uma pertença junto
à autoafirmação e à autonomia dos indivíduos. A dissolução do indivíduo é a
perda do último elo naquilo que o papa Francisco tem chamado de
autorreferencialidade, imanentismo, e que, ao lado da depressão, marca a
cultura de nosso tempo como narcisismo. Narciso, o personagem da mitologia
grega, acabou por se afogar na sua própria imagem encantada.
4. O desafio da vida em redes complexas para a
religião, para a Igreja e a VRC: “O todo é superior à parte” (EG 234-237)[1]
Já compreendemos que a nossa mudança epocal não é apenas o fato de
passarmos de uma compreensão e uma relação com a realidade de forma mecanicista
e linear, aditiva e disjuntiva, para
compreensão e relação complexa e multirreferencial, recursiva e
dialógica, “hologramática” (Edgar Morin), em que tudo tem a ver com tudo, e onde o todo não é somente maior do que a
soma das partes mas, em sua complexidade e recursividade, o todo está em cada
parte, habita cada fragmento. O papa Francisco cita este axioma para posicionar
o olhar da Igreja, da evangelização, no mundo complexo que nos é dado
compreender. Em termos prático, graças à revolução científica e tecnológica do
século XX, que ainda está em curso, em que a própria tecnologia se tornou
“ambiente” e “nutrição” - tecnologia perpassada de vida e inteligência - o novo
paradigma, que pode até nos dar vertigem em seus primeiros sinais, encontra a
sua melhor imagem na Internet, no seu big
bang criador e no seu crescimento exponencial. Especificamente, na
Internet, o atual estágio das redes sociais é a sua ponta de lança.
O cientista brasileiro Augusto de Franco, em seu site[2] e em
suas lições sobre “viver na rede e da rede”[3], recorre
a três modelos de laços sociais para avaliar a atual revolução da compreensão
da natureza do “social” que, na verdade, sempre esteve na base das sociedades
estruturadas mas que hoje se impõe de forma globalizada praticamente
inexorável. Vou me servir desses modelos para ir depois às consequências
religiosas e eclesiais – inclusive “eclesiásticas”.
Embora se deva
contar com tensões, com conflitos e incongruências, as novas tecnologias de
comunicação estão amplificando e disponibilizando em larga escala uma forma de
conexão, de interação e de laços sociais que a antropologia reconhece como a
primeira plataforma na formação da humanidade: a conexão espontânea, aleatória,
fortuita e gratuita. É o que pesquisadores da área chamam de interconectividade e interação com informação distribuída. Para entender seu papel na atual
mudança, aqui estão os três modelos de estruturação do social, segundo as
figuras de sociedades abaixo: centralizada (A); descentralizada (B); e
distribuída (C).

O primeiro modelo
é o de sociedades organizadas de forma centralizada: estruturadas por poderes e
saberes centralizados e hierarquizados, verticalizados e concentrados no topo
ou no centro, já que os modelos geométricos poderiam ser tanto a pirâmide como
a esfera. Através de muitas mediações e caminhos tudo parte de um ponto de chefia,
passando por sub-chefias, num fluxo único da “in-formação” e de comando de ação.
O melhor exemplo são os reinos absolutistas, os impérios. Isso se refletiu na
Igreja “romana” porque a Igreja foi herdeira de um dos mais emblemáticos
impérios, justamente o romano com sua genialidade jurídica e institucional
altamente centralizadas. Embora a Igreja, por sua fonte dessacralizadora de
todo absoluto que não seja Deus, tenha se mantido normalmente em tensão com o
império, tanto no Oriente como no Ocidente. No entanto, a “reforma gregoriana”
da Igreja latina, na virada do primeiro para o segundo milênio, centralizou
fortemente a Igreja na figura do papa num poder simbolizado na tiara com três
coroas, que teve vida longa. O último dos grandes impérios altamente centralizados
talvez tenha sido a União Soviética, que desmoronou sob seu próprio peso. O que
hoje alguns insistem em chamar “império americano” funciona numa nova lógica, e
talvez não se deva mais caracterizar como “americano” já que, tratando-se do Global Market, não tem propriamente
pátria e todo lugar pode ser pátria – uma estranha “catolicidade” que lembra a
célebre Carta a Diogneto. Hoje não há organização que funcione realmente de
forma totalmente centralizada. Mesmo os “impérios” industriais, de comércio, de
comunicação, etc. passam para o segundo modelo.
O segundo modelo
é o de sociedades descentralizadas, compostas de conexões de muitos centros,
com muitos nós de distribuição de informação e de poder. É a tendência
dominante hoje nas instituições industriais, comerciais, de comunicação, de
serviços, etc. Trata-se de “departamentos”, de conglomerados, holdings, ou
então as grandes multinacionais que portam para cada país o nome mesmo do país,
como HSBC Brasil ou Coca-cola Brasil. Ou uma universidade com diversos campi espalhados pelo país. Talvez aqui
caiba também o modelo geométrico que o papa Francisco evocou no lugar da
esfera, o poliedro (cf. EG 236). Ou
seja, uma configuração que comporta “polígonos”, muitos pontos que confluem e
se conectam, mas cada parte guarda também a sua própria originalidade regional,
seus próprios saberes e poderes, suas tradições. Segundo o papa, uma sociedade
na configuração do poliedro tem capacidade de reunir e conservar o melhor de
cada parte. Inclusive os pobres, com sua cultura, seus projetos e
potencialidades, são respeitados e encontram seu lugar, e até os que erram
podem ter algo a oferecer. O modelo mantém organização e disciplina estável
ainda que de forma descentralizada, devendo eventualmente alguns centros passar
informação e obediência a outros centros, na forma de filiais. Uma Igreja de participação e comunhão, como comunidade de comunidades, onde não mais
a paróquia como tal mas os grupos eclesiais organizados são a célula básica,
cabe neste segundo modelo, que é o modelo “do meio”, no qual podemos reconhecer
muito de nós mesmos.
O terceiro
modelo, nascente agora em nova escala, embora sempre existente, tem na Internet
a sua configuração, como já disse e volto a frisar. Caracteriza-se por conexões
ou redes com informação e interação cada vez mais disponíveis e distribuídas, e
cada vez com menos mediações. Cada ponto pode se conectar com todos os seus
vizinhos diretamente e pode se movimentar livremente na rede, conectando-se
imediatamente até pontos os mais distantes e antes impensáveis. Por isso já não
é mais modelo nem descentralizado, é tecido de conexões sem centros, sem nós de confluência e regulação, é tecido de interconectividade e de interação que se multiplica de forma
exponencial e sem controles, graças à internet. Assim, os fluxos de informação
e de influência, o saber e o poder, ficam totalmente abertos, distribuídos,
retroalimentados, reforçados, sem criar centros. Os centros eventuais são
efêmeros, criam-se, dissolvem-se, recriam-se em outra forma... A melhor figura
não é mais geométrica, é a livre iniciativa das postagens entre “amigos” na
internet, no Facebook, ou os “seguidores” no Twitter, ou ainda simplesmente ao
acessos à rede. Mas também as novas formas de relacionamentos urbanos, que
podem aglomerar espontaneamente para improvisar uma happy hour num bar da vizinhança, como podem também derrubar
governos, como aconteceu nas primaveras árabes. Assim foram também Occupy Wall Street, Los indignados, e a tendência das atuais manifestações que revelam
outra ordem social desde sua forma de começar, de acontecer, de se diluir, de
se refazer, de aparecer de novo metamorfoseada.
A interatividade,
em outras palavras, começa na rede “eu e meus amigos, e os amigos de meus
amigos, que também tem amigos”, É a egonet
que alcança até três círculos espontâneos de conexões, sem hierarquia ou
chefia. Esses “amigos” todos tendem a se conectar entre si e a alimentarem e se
nutrirem com novas interações, multiplicando para fora da egonet exponencialmente em miríades de redes. Importante é a
mudança da forma de relação que constitui esse novo tipo de sociedade: em
qualquer um desses ambientes - no Facebook, no Whatsapp, no Twiter, no Google
Plus, etc. - padre ou político ou professor – seja o presidente da república, o
cardeal ou o líder de uma facção – todos viram “apenas amigos”, ou então
“cidadãos todos iguais e comuns” no sentido de “conectados”, “em comum” e em
“interação”. O bispo é amigo do seminarista ou do crismando, e estes não
precisam mais passar suas informações através do formador ou do pároco para uma
troca de ideias diretamente com o bispo. Dilui-se a mediação, a hierarquia e a
centralidade.
A interatividade
na rede, é importante observar bem por causa de suas consequências, além de não
ter hierarquia, não tem mediações fixas, e acontece cada vez com menos
intermediários por seu fator de acesso, retransmissão e multiplicação
exponencial. O melhor exemplo é a “viralizaçao” de uma informação, de um vídeo,
que, em pouco tempo tem milhões de acessos em todos os continentes. Quanto mais
se estende, mais aleatoriamente e rapidamente acontece, fazendo coincidir no
instante o tempo e o espaço, o que chamamos de “em tempo real”.
Esta nova
conformação social que nasce em nosso tempo por interconectividade e interatividade
como um novo big bang, não é igual a participação, segundo as observações e
distinções de Augusto de Franco. “Fazer parte” é possível nos dois modelos
anteriores. Supõe a existência de algo já existente e proposto, no qual se pode
seguir um líder, ter um coordenador ou uma maioria decisória, com decisões
vindas de alguma forma de autoridade ou de uma maioria após debate e votação
que no final se impõe a todos. A participação é do membro de um partido, de uma
facção, de uma confraria, de uma congregação, de um corpo do qual se é membro,
de uma comunidade estável, normalmente anterior ao membro que dela participa,
portanto diz respeito também a uma Igreja. A participação dá o “sentido de
pertença”, de ser membro e parte de algo maior. Mas a atual conectividade e
interação descolam das pertenças estáveis já determinadas, e possibilitam
exercer em grande escala, em multidões, o grande ideal da modernidade: a
autonomia dos sujeitos, onde cada sujeito se abre livremente e criativamente a
um mundo de possibilidades, segundo afinidades eletivas e eleições de fato.
Cada pessoa não é um “indivíduo privado”, fechado numa mônada com relações já
estabelecidas e ritualizadas por alguma forma de poder, mas despojada e aberta
aos fluxos, debates, discernimentos, ainda que deva confiar em suas asas
na fluidez meteorológica dos nossos
tempos.
Este terceiro
modelo, embora seja o modo de vida das sociedades mais simples em pequena
escala, assume hoje, por sua potencialização planetária, um modus essendi et vivendi para o qual
estamos migrando coletivamente e massivamente. Não temos ainda nem poderíamos
ter clareza sobre todos os seus aspectos e efeitos, mas seus sinais se mostram
como realidades eficazes, com consequências muito reais. Se podem até derrubar
governos, como já aconteceu, poderão também derrubar os ídolos sagrados do Global Market? Como Igreja, poderão assim
se derramar os carismas do Espírito numa comunhão toda carismática e toda
ministerial, o que se diz que deve ser a Igreja? Poderiam apontar na direção do
sonho de Joaquim de Fiore, de um tempo de afinação de um só corpo e uma só alma
no Espírito, superando a cidade das misturas de Santo Agostinho? Poderíamos
estar diante da possibilidade de uma nova e mais ampla catolicidade pentecostal? Ou é fantasiar demais?
Segundo Augusto
de Franco, não é necessário passar dos modelos anteriores, o primeiro como
imperial-hierárquico, o segundo como dioceses, matrizes e capelas, para
chegarmos finalmente ao terceiro de redes totalmente distribuídas. Pode-se
nascer e viver na rede. Por isso interessa seguir sua formação, que pode ser
descrita em quatro passos:
1. Aglomeração
(clustering): a conexão e a interação
tendem a criar gravitação, ou seja atração, que aproxima e aglomera, desde
os aglomerados estelares até a turma à beira de um campinho de futebol de
várzea, o grupo de jovens na pracinha da capela ou na secristia, ou motoqueiros
junto a um posto de gasolina, etc.
2. Enxameamento
(swarming, flocking): os aglomerados
tendem a interagir com movimentos como os dos pássaros em revoada ou dos peixes
em cardume que, voando ou nadando velozes em aglomerados, mesmo mudando
rapidamente de direção, não tem um comandante, um líder, nem uma hierarquia, e
no entanto não se batem, não se atrapalham, estão altamente organizados. Dançam
com estética invejável. Há peixes que murmuram em coro, há insetos e pássaros que
fervilham e parecem bem combinados. Humanos aglomerados pela interatividade
também se tornam um evento em movimento mesmo sem um líder, sem distribuição de
papéis especiais. Há uma “swarming
intelligence”, uma espécie de inteligência grupal, coletiva, que só
emerge nessa interação conjunta. Um bom exemplo é a dança improvisada em certos
grupos africanos, que começa com duas ou três pessoas e vai atraindo e
agregando mais gente até chegar a uma performance de multidão fervorosa numa
dança sincronizada mas espontânea ainda que pareça ter sido bem ensaiada.
Costuma-se, às vezes, dizer: “Se tivéssemos combinado ou ensaiado não teria
saído tão bem!”
3. Imitação
(cloning): Sai-se bem quem exerce a
capacidade cada vez mais veloz de copiar. Nunca se copiou e se colou tanto como
na cultura da informática e da cibernética. A escola de hoje não consegue mais
proibir a cola. Pelo contrário, é pela colagem e pela imitação que se faz o
percurso de ser si mesmo e ao mesmo tempo contribuir para uma inteligência em
conjunto. Um curso elementar de piano deve imitar Bach e Chopin, um curso de
pintura deve imitar Van Gogh, um curso de Jazz deve imitar passos, até alcançar
a própria originalidade. O mimetismo
é a internalização do que o grupo, o “emaranhado”, faz e pensa. Na dança, como
na revoada dos pássaros, a ordem é “copie o vizinho!” – e todos acabam imitando
todos numa performance de comunhão e numa realização que só a ação em conjunto
pode permitir e explicar. Este é também o percurso do consenso antes mesmo da
consciência, é um com-sentimento.
4. Compactação (crushing): O emaranhado adquire solidez com a interação
exponencial. As distâncias estão
diminuindo exponencialmente também. A expressão “em tempo real”, como o Just in time significa isso – tempo e
espaço compactados, coincidindo no instante. Assim, “num instante” estaremos
virtualmente todos ligados, de tal forma que todo mundo começa a ter mais
chance de conhecer e ser conhecido, de ser “famoso” sem precisar ser especial, nem
herói nem super-homem, basta estar conectado. De certa forma, vamos nos
tornando uma aldeia sem campanário e sem coreto das autoridades. Mas não é
anarquismo que gera conflito, o bater-se da desordem e do caos. É outra ordem,
“ordem distribuída”, com uma nova forma de poder: quando o emaranhado começa a
fervilhar e a mover, há uma energização, um “empoderamento” (empowerment) que é uma forma nova de
exercer o poder. Hannah Arendt já tinha definido bem esta forma de poder como
“capacidade de ação em conjunto”, que diz muito da nova forma da obediência não
mais mecânica mas de interações distribuídas.
A transição de um modelo para outro apresenta passagens e
momentos críticos. Pode haver insegurança e reações diversas, até porque em
nenhum modelo a sociedade é por si mesma somente boa e positiva. Violência e
abusos, injustiças e corrupção, perdas e fracassos, tudo pode ocorrer em
qualquer dos modelos. O modo em que acontecem é que os diferencia. Além disso,
como em toda transição, não se trata de substituição pura e simples. Os modelos
precisam conviver até por tempos longos. Não se pode deixar de levar a sério o
modelo envelhecido mesmo sabendo que está decadente, mas sem poder deixar de
experimentar o novo, que exige uma nova alfabetização, como uma conversão. Por
isso o primeiro passo para uma boa transição é sempre o do reconhecimento e despojamento.
De qualquer forma, o isolamento e a autoproteção diante de
uma realidade altamente interativa com informação distribuída, daria em perda
de sustentabilidade, perda de antenas, e esclerose, perda da alostase, esta capacidade de relação e
interação viva com o que está em torno de forma a manter crescimento e transformação
( é o que se entende por alostase: em
contato com outros, ir se transformando, tornando-se “outro”). A teimosia em
permanecer nos modelos que se tornam disfuncionais, além do enrijecimento,
portanto esclerose, paga o preço da irrelevância, serve apenas ao folclore,
como certas rainhas e certos vestuários solenes.
O modelo de interação com informação distribuída pode ser
encontrado já nos seres vivos pluricelulares mais primários: as células não
erguem paredes, não são mônadas encasteladas, elas tecem membranas permeáveis,
fronteiras receptivas para trocas de informação e de nutrição. É também a autopoiesis molecular (Maturana e
Varela), em que o ser vivo se mantém sujeito autônomo na mesma medida em que é
capaz de interação. Mantém, assim, a alostase
– tanto a boa relação com o que é diferente que informa e nutre, como a
possibilidade de ir se tornando diferente, de se transformar. Quem perde
contato e permeabilidade perde a capacidade de alostase, não muda, e a defasagem levará à falência.
Enfim, o modelo de rede interativa com informação
distribuída muda não só o modo de se comunicar, mas também de aprender, de
trabalhar, de administrar, de governar. O interesse não é mais o de se tornar
chefe ou rico, competir, fazer carreira e ter sucesso – isso é visto como carcaças pesadas – mas o
de fazer experiências significativas, criativas, agregadoras, ainda que
parecendo “desajustadas” pelo sistema que é atualmente hegemônico. É, por
exemplo, o que acontece com jovens que preferem arriscar um intercâmbios ou um
estágio em outras línguas do que um emprego e uma carreira estável.
Para concluir esta parte, são importantes três
observações:
1. Como já acenado, este terceiro modelo de “tecido social
em rede” – netweaving - é, na
verdade, o mais originário: existiu e ainda existe nas sociedades mais simples,
assim como continua a existir na base ou nas margens ou nos interstícios das
sociedades marcadas por hierarquias e papeis rígidos. O “povo” vive
cotidianamente assim, nos bairros de periferia, nos cortiços, na informalidade.
É o caso dos amigos, dos compadres, da vizinhança, justamente o que é mais
essencial e decisivo em momentos cruciais. Mesmo o gerente engravatado de uma
empresa durante a semana tem no sábado seu grupo de amigos em bermudas onde
todos, ainda que na empresa estejam hierarquizasdos, se tratam com igualdade e
as informações fluem em todas as direções.
2. Um modelo, na realidade, nunca é puro, e é difícil
imaginar uma sociedade inteiramente sem centros e com tudo inteiramente
distribuído. Parece mais compatível com a realidade social que ela, justamente
em sua complexidade, se desenvolve para centros, para nós de conexões, ao mesmo
tempo em que anda na direção contrária, para a espontaneidade das relações
diretas totalmente distribuídas. Pode-se encontrar estas “camadas” de modelos
ao longo da história, das culturas, do cotidiano.[4] A Igreja
mesma pode ser situada simultaneamente nos três modelos, enquanto ela tem
alguns aspectos inteiramente centralizados – tudo o que se refere a Roma, por
exemplo -, tem em suas dioceses e comunidades paroquiais uma organização mais
ou menos descentralizada em muitos centros conectados, com hierarquias mais
distribuídas, conforme o modelo do meio, o segundo modelo. Mas a Igreja tem na
verdade uma infinidade de iniciativas inteiramente sem centro, desde a
transmissão da fé passada de forma familiar, por vizinhança, iniciativas de
caridade e de oração, etc. que não precisam e de fato não tem comando
hierárquico. Passam às vezes pelas janelas entre vizinhas. Mas aqui importantes são as tendências: qual
o modelo mais funcional no atual estágio do mundo em que todo mundo, até a
criança numa comunidade dos Andes ou da “África profunda”, anda de celular na
mão, sabe o que é um tablete e assiste futebol europeu transmitido via satélite?
3. A interação com informação inteiramente distribuída –
lembrando que informação é sinônimo de nutrição e de trocas desde as células e
moléculas – remete a uma exortação
aparentemente estranha de São Francisco aos seus irmãos, de que cada um seja
para o outro mais do que uma mãe que nutre seu filho.[5] A amamentação é a interação e a informação
mais fundamental e mais completa, entre as primeiras conexões de vida autopoietica e alostática. Se, porém, nos remetemos diretamente para Jesus andando
pela Galiléia, não se furtando aos que acorriam para escutá-lo e para serem
curados, tomando barco e encontrando pequenas multidões, agindo e reagindo – interagindo, portanto, de
forma recursiva - numa rede caracterizada pela espontaneidade, pela amizade e
até cumplicidade sem fronteiras – onde mulheres e crianças, como pessoas de
qualquer origem ou posição social – o centurião, o doutor da lei, o publicano,
o fariseu, o leproso – se aproximavam e eram atendidas sem acepção de pessoas,
culminando na mesa comum do pão partilhado, da eucaristia no cenáculo da manhã
da Páscoa e de Pentecostes, na densidade de informação carismática do Espírito
Santo a todos os que creem, nas reuniões pelas casas e pregações em praças e
corredores do império, então temos aí a narrativa da criação de uma rede com
alto empoderamento, que está no big bang da
história cristã: Entre Jesus e o Espírito, Encarnação e Pentecostes.
Em conclusão: as consequências para a religião em geral e
para a Igreja em particular, como para as abelhas e borboletas da VRC, num primeiro
momento parecem devastadoras: no terceiro modelo caem todo centro, toda
hierarquia, todo controle, toda reserva de poder e delegação de poder. A
religião estruturada em instituições, como todas as grandes instituições
tradicionais – o Estado, a Escola em todos os níveis, a família e até o gênero
enquanto hierarquia de papéis - está em grande crise. Junto com sua perda de
relevância entram em crise a fé e a esperança articuladas por sua mediação. É
necessário reconhecer hoje uma imensa crise de fé que perpassa inclusive o clero
e a VRC. O fundamentalismo que reage com dureza, retirando dos velhos modelos
fragmentos que deveriam estar em museus são como estertores que testemunham a
crise e a mudança, até porque os próprios fundamentalistas utilizam
contraditoriamente, com excessão da seita dos Amish na Pensilvânia e de algumas comunidades Menonitas, as mesmas novas redes e tecnologias de comunicação, de
atração, de mimetismo e compactação, seguindo os quatro passos indicados acima.
Basta conferir tanto o modus operandi do
Estado Islâmico como os vídeos postados na Internet que defendem o uso da
batina tradicional, etc.
5.
Três
clamores à religião, à Igreja, à VRC.
As novas condições sociais estão dando três indicações,
que são inclusive três clamores num sentido amplo, e que podem merecer
respostas específicas como diálogo, exercício, testemunho eclesial e da VRC,
para o que é necessário ser “como o bom mestre que se tornou discípulo do Reino
de Deus e que, como um pai de família, sabe tomar do seu tesouro recursos novos
e antigos” (Mt 13, 52):
5.1. O clamor da mística
Para além das
formas tradicionais de religião, a espiritualidade continua a ser uma busca que
caracteriza o ser humano, e portanto conta muito, até mais em tempos de crise e
de caos, pois só uma espiritualidade criativa, ao mesmo tempo sólida e capaz de
oferecer energia, também socorre como remédio e inspiração.
Nesse sentido, a
centralidade da Palavra de Deus, a leitura orante, o exercício do silêncio,
enfim os recursos que a história do cristianismo oferece, não são um luxo
descartável mas um ponto crucial nas condições contemporâneas. No entanto, será
bem importante não confundir a oração com autoajuda narcisista, e para isso são
necessários os elementos que socorrem os outros dois clamores: a comunidade e a
missão. É exemplar o trabalho do filósofo italiano Giorgio Agamben em Opus Dei ao recuperar, como inspiração
para sociedades seculares contemporâneas, o sentido monacal do Ora et Labora, a liturgia, a
espiritualidade efetivamente exercitada em comunidade, não apenas teorizada,
como inspiradora e modeladora do conjunto da vida, inclusive da vida política,
dando-lhe coerência e profundidade.[6]
5.2. O clamor da comunidade.
Em tensão com o valor
do indivíduo, da autonomia e da dignidade da pessoa, a valorização da comunidade,
do laço de pertença com estabilidade minimamente suficiente, a entrega a uma
comunidade de cuidados recíprocos, é ao mesmo tempo um clamor e uma graça. Ate
mesmo os cursos de treinamento, de Coaching,
enfatizam a criação de equipes inspirando-se em regras de comunidade.[7] Peter
Block, em seu community, the strucutre of
belonging, oferece critérios e dicas práticas de como criar e cultivar
comunidades numa sociedade secular, inclusive no mercado enquanto gestão e
produção em conjunto.
O mais
significativo, no entanto, em termos de comunidade, segundo o autor já citado,
é a busca de ancoragem na experiência de pertença e na partilha, no laço de
reconhecimento e de acolhimento, de hospitalidade e compromisso mútuo com
duração no tempo, ou seja, em termos mais tradicionais, na fidelidade aos laços
através de sua renovação continuada, dialógica, transparente.
Já Giorgio
Agamben, em relação à comunidade, nos surpreende com um instigante texto, Altíssima Pobreza, em que explora as
regras de formas de vida comum na tradição da Igreja. [8] Trata da
ousadia, em meio a sociedades medíocres, da iniciativa “inspirada” de criar um
espaço de vida onde as normas, os valores, as relações, se tornam outras,
alternativas, diferentes da sociedade em torno, com legitimação mística, mas,
de novo, como na mística, não algo teórico e sim efetivo e estável. A expressão Íncipit vita nova ou então “Esta
é a regra e a vida...” para sinalizar que a entrada em uma comunidade
destas era como entrar em um mundo novo, não era apenas um tratado de conversão,
era a aquisição de um novo ser em uma nova comunidade. A linguagem, até mesmo a
narrativa, tinha/tem a força de regra,
modelando realmente uma nova “constituição” social, um “direito” próprio eficaz.
A dose de liberdade, de ousadia e “empreendedorismo” na criação de comunidades
pode hoje ser vista como inspiradora se partir de um ponto “sagrado”, um “texto
sacro” que legitime e sustente. E novamente aqui, é necessário saber tomar do
tesouro recursos novos e antigos, combinando os três clamores: a mística e a
missão com a comunidade.
5.3. O clamor da missão
Se levarmos a
sério a mudança de modelo em direção à rede, o terceiro modelo examinado acima,
não é a administração de obras, mas a missão - de peito aberto em linha de
frente, em “fronteiras, desertos e periferias” - que poderá suscitar atração sem mediações complicadas e
assim também vocações genuínas e não acomodações. Claro: junto a uma mística sólida e uma comunidade
saudável. A missão corresponde à preocupação com uma “Igreja em saída”,
superando o narcisismo da autorreferencialidade. E corresponde à razão central
para legitimação de existência de uma Igreja organizada: a evangelização,
segundo a Evangelii Nuntiandi,
Aparecida e Evangelii Gaudium. Nesse
contexto é bom lembrar os quatro princípios que o papa Francisco enuncia na Evangelii Gaudium: 1. “O tempo é
superior ao espaço”; 2. “A unidade prevalece sobre o conflito”; 3. “A realidade
é mais importante do que a ideia”; 4. “O todo é superior à parte” (Cf. EG 217-237). Aqui, no entanto, é
importante sublinhar o foro de cidadania que a religião ganha em sociedades
seculares quando a missão está voltada para a construção do Bem Comum, da
justiça e da paz social, segundo a mesma Evangelii
Gaudium 217ss.
Num contexto
social líquido e flutuante, a busca de plataformas comunitárias sólidas pode
empurrar para a tentação fundamentalista de colocar a própria comunidade e a
sua sobrevivência como real e sutil finalidade última da missão. Isso, em médio
prazo, leva a fechar a comunidade sobre si mesma, começo de sua decadência. A
missão - a evangelização – provoca a permanecer de portas abertas, em conexão
com outras forças da sociedade, e assim também areja e dá substância à
comunidade e à oração. Enfim, não é novidade que estas três colunas mestras precisam estar tão bem articuladas como a
pericorese trinitária entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo.
E novamente aqui
Giorgio Agamben nos surpreende com um estudo exaustivo da correlação entre
mística, teologia, política e economia ao longo da história da Igreja, um
estudo paciente e cuidadoso em seu livro O
Reino e a Glória[9].
Por exemplo, pergunta-se porque, mesmo numa sociedade secular, cuja
política não tem referência legitimadora num princípio sacro transcendente,
continua a necessidade de formalidades e exaltação do governo, de “liturgia do
poder”? Porque há elementos “sagrados” na economia, como, por exemplo, o
pagamento de dívidas e o próprio dinheiro? A leitura de Agamben traz recursos com
uma teologia e uma liturgia políticas e econômicas. É neste arcabouço que o
Ocidente moderno se estruturou por mais de milênio. Para nossa surpresa, inspirando-se
em Erik Peterson, famoso por seu livro Monoteismo
como problema político em que nega uma teologia política de bênção aos
poderes vigentes no mundo, e que, logo em seguida, escrevendo curiosamente
sobre anjos, emposta o lugar da política e da economia numa teologia bíblica,
Agamben aprofunda o papel angélico da
fé cristã. Percorre uma detalhada angelologia que se estende pela patrística e
pela escolástica e que é de proveito no trabalho deste pensador: anjos que
“assistem” a glória divina, e anjos que são “ministros” como mensageiros e autoridades
com quem Deus partilha a providência e o governo do mundo, portanto, de caráter
político e econômico, inclusive midiática
de Deus. Portanto, anjos litúrgicos e
anjos missionários, espelhamento do que significa estar na presença e ao mesmo
tempo colaborar com Deus em sua obra. A própria hierarquia angélica toma aqui
um sentido simbólico e eficaz, o que legitima e ao mesmo tempo critica as
hierarquias que emergem na terra dos homens: se realmente servem à verdadeira
glória que coincide com a economia e a política de Deus providente, a justiça e
o bem de suas criaturas.
Porque, afinal,
há também demônios, e há uma demonologia e até “anticristo” – inclusive no
plural – que são possibilidades da religião e do cristianismo em particular.
Não falta quem veja, como Ivan Illich e Pierre Legendre, o desenvolvimento da
modernidade como uma perversão demoníaca e o aparecimento do “anticristo” que
parte de dentro do próprio cristianismo, um formalismo canônico que se manteve
com legitimação bíblica até a modernidade mas que já não tem nem referência e
nem legitimação, sobretudo em relação aos novos poderes sociais e tecnológicos
surgidos agora, diante dos quais estamos todos sob o risco da exceção e da
violência “nua”, sem legitimação e sem defesas institucionais.[10] A
perversão não é a única possibilidade de interpretação dos tempos de crise
extrema e perigosa mudança em que vivemos, pois ao se considerar os direitos
humanos podemos dizer que são um avanço que tem raízes evangélicas e agora tem
condições de criticar a própria religião, inclusive a Igreja.
De qualquer
forma, a missão “nua”, na linha arriscada da fronteira, do deserto e da
periferia, depois de todo diálogo e parceria, pode ainda ter que se manter em
postura profética, angariando mal-entendidos e perseguições. Esta verdade, que
é um teste e um testemunho, tem também uma longa história no tesouro da
experiência cristã. E aqui entra o “sacrifício” com sua atração e repugnância ao
mesmo tempo, a ignomínia da cruz (Hb
13, 13) o escândalo e a loucura (1Cor 1, 17-31) que estão no
coração da legítima fé cristã. Porque “não temos aqui embaixo cidade
permanente, mas estamos á procura da cidade que está para vir” (Hb 13, 14).
Conclusão: Uma nova catolicidade.
Esta mudança
de época tão global e radical vai exigir páscoa - morte - para que haja
ressurreição. Em termos institucionais não deveríamos ter muito medo de morrer,
embora seja sobre as instituições que o axioma medieval recomenda: non multiplicanda entia sine necessitate –
não se multipliquem as instituições sem (real) necessidade. Porque elas passam
a seguir um princípio ontológico esclarecido por Spinoza, o conatus essendi: “todo ser faz todo
esforço que está em si para perseverar no seu ser” (Ética III). Nenhum ser, e
em nosso caso, nenhuma instituição, aceita morrer, mas fará de tudo, até
desastres, para se manter existindo. Saber decretar o fim de instituições pode
ser uma dolorosa sabedoria.
Por outro
lado, este tempo pode ser saudado como aurora, ainda confusa em seu lusco-fusco.
O lusco-fusco do fim, do anoitecer, e o do começo, do amanhecer são tão iguais
que podemos não distinguir se estamos morrendo ou (re)nascendo. Que seja aurora
é uma profissão de fé tipicamente profética: aurora de um tempo em que tudo será novo,
inclusive a religião, a Igreja, a VRC. Uma nova catolicidade pode emergir desta
radical globalização, do terceiro modelo - de vida em rede, ecológica, com um
novo sentido da catolicidade, composta de diferentes “línguas, povos e nações”,
com uma nova linguagem, um “holograma” pentecostal, ao mesmo tempo empoderada
pelo Espírito e encarnada num grande Corpo de Cristo, para além de qualquer parede
institucional e aquém de todo corpo de carne e osso, corpo e sangue de toda
criatura: “Não fiquem lembrando o passado, não pensem nas coisas antigas Eis
que estou fazendo uma coisa nova, ela está despontando agora, e vocês não
percebem?” (Isaias 43, 18-19).
[1] Neste quarto ponto retomo o meu texto já publicado no
opúsculo para o 16º Encontro Nacional de Presbíteros, Presbíteros no Brasil: a Alegria no anúncio do Evangelho - “Eis que
faço novas todas as coisas!” (Ap. 21,5). Editado pelo Conselho Nacional de
Presbíteros, abril de 2016. Pode-se, no entanto, ler apenas o primeiro e o
último parágrafo desde ponto sem prejuízo da compreensão global do texto.
[4]
Encontram-se narrativas dessa tensão entre sociedades estruturadas por papéis,
funções e hierarquias de um lado e de outro por tempos ou espaços ou grupos em
intensa comunhão na interação e na igualdade sobretudo em ritos de passagem.
Cf. TURNER Victor, O processo ritual. Estrutura
e anti-estrutura. Petrópolis: Vozes, 1975.
[5] É uma imagem recorrente do santo: todos têm capacidade
de nutrir como mães uns para os outros. Por exemplo: “E, onde quer que estejam
e se encontrarem, os frades mostrem-se familiares mutuamente entre si. E com
segurança manifeste um ao outro sua necessidade, porque, se a mãe ama e nutre o
seu filho carnal, quanto mais diligentemente deve cada um amar e nutrir seu
irmão espiritual?” (Regra bulada 6, 7-8).
[6] Cf. AGAMBEN Giorgio, Opus Dei. (Homo Sacer II,
5). São Paulo: Boitempo, 2013.
[7] Cf. por exemplo o best-seller de Peter Block, Community, the structure of belonging. San
Francisco: Berret-Koehler Publishers, 2008. Agradeço a preciosa indicação do
Ir. Evilázio Francisco borges Teixeira.
[8] Cf. AGAMBEN
Giorgio, Altíssima Pobreza. Regras monásticas
e forma de vida. (Homo Sacer IV,1).
[9]
Cf AGAMBEN Giorgio, O Reino e a Glória,
uma genealogia teológica da economia e do governo. (Homo Sacer,
II,2). São Paulo: boitempo, 2007.
[10] Cf. ILLICH Ivan & CALEY David, La corruption du meilleur engender le pire. Arles :
Actes Sud, 2007. LEGENDRE Pierre, L’autre
Bible de l’Occident : le monument romano-canonique. Étude sur
l’architecture dogmatique des societés. Paris : Fayard, 2009.
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