Vida Religiosa Consagrada em processo de transformação

24ª Assembleia Geral Eletiva - 11 a 15 de julho de 2016

terça-feira, 12 de julho de 2016

Religião e Igreja no emaranhado do tempo presente




AGE – CRB – Brasília 12/07
Frei Luiz Carlos Susin OFMCap.

Introdução: Qual olhar, qual horizonte?
Na Evangelii Gaudium (EG), programa de pontificado do papa Francisco, há uma salutar indicação: ao examinar o contexto em que somos chamados a viver, “é habitual hoje falar-se de um ‘excesso de diagnóstico’, que nem sempre é acompanhado por propostas resolutivas e realmente aplicáveis”(EG 50), e depois de chamar a atenção para a inútil pretensão de se ter um olhar “supostamente neutro e asséptico”, o papa fala de um “olhar pastoral”, que comporta um “discernimento evangélico” já implícito no próprio diagnóstico. Se vamos estender nossa visão até o horizonte da era axial ou pré-axial, ou ainda até o paleolítico ou talvez, em escala ainda maior, até o horizonte do surgimento da vida ou do planeta, ou mesmo até os mais de treze bilhões de anos-luz do universo, o nosso interesse está aqui e agora, nesta geração, nesta vida religiosa consagrada e nesta Igreja, em nossa vocação e missão neste mundo junto aos nossos contemporâneos.
Talvez possamos começar constatando que a Vida Religiosa Consagrada (VRC) está para a Igreja e para o mundo como as abelhas para a ecologia: representa a condição espiritual e humana a mais sensível no seio da Igreja e do mundo. Nesse sentido a delicadeza espiritual poderia ser vista também como algo extremamente frágil, que precisa de todo cuidado se quisermos ter de seu mel espiritual. Ou ainda outra metáfora: a VRC é como a vida das borboletas, extremamente sensíveis à atmosfera em que vivem, inclusive em suas cores. Mas sabemos do “efeito borboleta”, que com o bater de asas sobre o continente pode causar uma tempestade no oceano. Isso é realmente possível em sistemas abertos e dinâmicos, com doses de caos e de incerteza, e isso supõe energia. Ora, a VRC pode até ser comparada à borboleta, delicada e frágil, mas ao mesmo tempo, em situações de caos e incerteza, desencadeadora de imensa energia criativa. É nesse sentido que Paulo VI expressou o maior e mais intrigante elogio à VRC:
Quem é que não avalia a imensa quota-parte com que eles têm contribuído e continuam a contribuir para a evangelização? Graças à sua consagração religiosa, eles são por excelência voluntários e livres para deixar tudo e ir anunciar o Evangelho até as extremidades da terra. Eles são empreendedores, e o seu apostolado é muitas vezes marcado por uma originalidade e por uma feição própria, que lhes granjeiam forçosamente admiração. Depois, eles são generosos: encontram-se com frequência nos postos de vanguarda da missão e a arrostar com os maiores perigos para a sua saúde e para a sua própria vida. Sim, verdadeiramente a Igreja deve-lhes muito! (EN 69)

E isso tudo pode ser resumido num exemplo entre os tantos que formam a “nuvem de testemunhas” (cf. Hb 11) em torno de Cristo: a Ir. Dorothy Stang, de fala mansa e sorriso luminoso, que empoderou os humildes e fez tremer os poderosos no coração da Amazônia, mártir e anjo dos povos da floresta. Deste contexto paradoxal de VRC alargamos aqui nossa análise para o contexto da Igreja e do cristianismo no mundo contemporâneo, mas hoje precisamos alargar do cristianismo para as religiões, para as múltiplas, grandes e pequenas, tradições religiosas, neste tempo em que estamos testemunhando uma mudança de época que afeta globalmente tudo e todos em todos os campos, que tem muito de caos e de criatividade, de perigo e de desafio. A religião é também a abelha e a borboleta, frágil e poderosa, delicada e com energia para destruir e construir.
1.       A religião nos ventos do mundo e do espírito
Se observarmos de longe, podemos concordar com os analistas que detectam uma crise de religião que só pode ser comparada à passagem das religiões da era pré-axial, tribal e sacrificial, para a era axial, mais universal, ética e compassiva. Isso significaria que a crise atual está fazendo desmoronar a religião, por grandes e veneráveis que sejam as tradições religiosas – e quanto maior também maior é o ruído do desmoronamento. A atual crise abrangeria o fim de um período religioso que começou no neolítico, um horizonte longíssimo. Nesse sentido o avanço da secularidade estaria indicando uma era pós-religiosa. E nessa escala não temos praticamente nada a fazer.
Mas se observarmos o nosso tempo um pouco mais de perto, como uma crise de racionalidade teórica e instrumental, é isso que se aplica também à religião e à Igreja: crise na solidez do discurso sobre Deus e sobre a existência mesma da religião, da sua relevância e utilidade.
Já se observarmos o nosso tempo como uma crise de racionalidade simbólica e emocional, também as tradições religiosas estão afetadas pela babel das linguagens e das emoções, dando lugar a uma criatividade religiosa às vezes exótica, sincrética e líquida, ou melhor, vaporosa e fluída, reduzidas frequentemente à emoção e à estética, mas com reações às vezes fundamentalista e dura.
Finalmente, se observarmos o nosso tempo como crise de posturas éticas e da moral estabelecida, sem princípios firmes e universais acreditáveis, nós constatamos consternados que a violência contida pelos sistemas fechados de comportamentos rompeu-se deslizando até nos espaços mais delicados da prática religiosa para a violência e o abuso ético seja na forma de abuso afetivo e sexual, de estelionato econômico descarado, de abuso espiritual na hermenêutica fundamentalista e intolerante, etc.
Em conclusão, nada do que é crise humana, social, deixa de afetar a forma da religião atingindo seu coração: onde está Deus em tudo isso? Onde encontrar o mel da abelha e a delicada energia da borboleta que é a religião em nosso tempo?

2.       Traços de religião hoje.
Leandro Karnal, historiador e conferencista do momento, sugere que há três teologias sustentando três formas de religião hoje: 1. A teologia do empreendedorismo; 2. A teologia da prosperidade; e 3. A teologia da autoajuda.
Para os mais fortes, a primeira forma de religião, o empreendedorismo: ser proativo, crer com audácia no próprio carisma, ler, participar e promover cursos e exercícios de liderança, de coordenação de grupos, de motivação, eficácia e produtividade. Saber treinar, comandar, criar uma empresa, ter sucesso e reconhecimento como Coach ou como Promoter, enfim, dizendo na língua sacra desta religião, habilitar-se em coaching. A teologia do empreendedorismo pode ser identificada, mais perto de nós, com o que o papa Francisco tem chamado de neopleagianismo, inclusive eclesiástico, e que é hoje uma grande tentação da VRC: reduzirmo-nos a administradores do que temos como obras, já que estamos reduzidos em número – e dê-lhe coaching com verniz de eficácia da missão.   
A segunda, a religião da prosperidade, para os que têm coragem de investir, de se jogarem nas relações de crédito, na sagacidade de lidar com o dinheiro como um sacramento, “sinal eficaz da graça”, pela maravilha do acúmulo de capital, desde a compra de eletrodomésticos, o carro, etc; pela confiança no emprego garantido, na renda financeira, finalmente no acesso ao consumo abundante, em sintonia com o sistema capitalista como religião, segundo o célebre escrito de Walter Benjamin de 1940, e ganhando assim no sistema a sua autoestima.
Mas estas duas formas de religião “inculturada” e sincretizada com o mercado e o dinheiro são sonho para muitos e realidade para poucos, parecido com o sonho adolescente de ser um jogador de sucesso. A corrupção e o fracasso são os seus infernos.
A maioria dos mortais, hoje, se devota à terceira forma, ao fervor da autoajuda, confessando ao menos implicitamente sua fragilidade e depressão ao invés da sua audácia e heroísmo, e buscando as energias cavadas do abismo e do caos de suas carências  para torna-las criativas e conseguir equilíbrio e serenidade, finalmente a paz. Assim, se experimenta o poder do milagre ou do pensamento positivo que faz milagres, só falta sair voando. Mas o mar de livros de autoajuda promete levantar do caos da depressão e sair voando. Ao menos para os que escrevem os livros de autoajuda.

3.       A sacralidade do indivíduo e a dissolução da sacralidade do laço social.
O que há de comum, no entanto, em todos estes fragmentos de práticas rituais, de dogmas e de mandamentos, mesmo secularizados, é a sacralidade do individuo.
Max Weber considerou a religião como elemento estruturante de uma sociedade em sua totalidade, a religião como sendo não só expressão mais alta, mas alma da cultura e da sociedade. E diante da interpelação sobre a sociedade moderna e secular, sem referência à religião tradicionalmente estabelecida, indicou para a crescente sacralidade do indivíduo, sacralidade em torno da qual se fortaleceu um consenso impossível de ser contestado, que se tornou base da sacralidade dos direitos humanos e de todos os avanços civilizatórios e humanitários dos últimos tempos.
De fato, o que importa, no coração de todo o sistema de religião, é a pergunta pelo sagrado, por aquilo que é fundante, que merece tal respeito a ponto de ser intocável. E o sagrado intocável, nos últimos séculos, é o indivíduo. Embora a sacralidade do indivíduo tenha uma forte raiz na tradição cristã da santidade da “pessoa”, onde foi que erramos para passar ao individualismo exacerbado de nosso tempo e às situações dramáticas, frequentemente trágicas justamente dos indivíduos: de solidão, depressão, autodestruição, desproteção, em que vencem os poucos mais fortes e mergulha na insignificância a maioria perdida por falta de reconhecimento e acolhimento?
A afirmação do indivíduo se deu, no entanto, à medida que, em nova situação urbana, na cidade moderna, o laço social foi perdendo sua sacralidade e se flexibilizou, se rompendo e se fragmentando, mergulhando em crise sem precedente o sentido tradicional de comunidade e de pertença. O título do capítulo sobre a análise de nosso tempo na EG não podia ser mais certeiro: “Na crise do compromisso comunitário”.
Na origem patrística do famoso axioma “fora da Igreja não há salvação” há uma boa razão se pensarmos que isso na verdade significava “fora da comunidade não há salvação”. A comunidade, no caso a Igreja, era como a arca de Noé em meio ao mar de tribulações, e os indivíduos sozinhos se afogariam em pouco tempo. Este é um paradoxo de nossos dias: o indivíduo sagrado, portanto intocável e inviolável, continua a sofrer violações. A bandeira dos direitos humanos por si só é incapaz de defender o indivíduo se não erguer a bandeira dos direitos de vida em comunidade e da coragem de se entregar a uma pertença junto à autoafirmação e à autonomia dos indivíduos. A dissolução do indivíduo é a perda do último elo naquilo que o papa Francisco tem chamado de autorreferencialidade, imanentismo, e que, ao lado da depressão, marca a cultura de nosso tempo como narcisismo. Narciso, o personagem da mitologia grega, acabou por se afogar na sua própria imagem encantada.

4.       O desafio da vida em redes complexas para a religião, para a Igreja e a VRC: “O todo é superior à parte” (EG  234-237)[1]

Já compreendemos que a nossa mudança epocal não é apenas o fato de passarmos de uma compreensão e uma relação com a realidade de forma mecanicista e linear, aditiva e disjuntiva, para  compreensão e relação complexa e multirreferencial, recursiva e dialógica, “hologramática” (Edgar Morin), em que tudo tem a ver com tudo,  e onde o todo não é somente maior do que a soma das partes mas, em sua complexidade e recursividade, o todo está em cada parte, habita cada fragmento. O papa Francisco cita este axioma para posicionar o olhar da Igreja, da evangelização, no mundo complexo que nos é dado compreender. Em termos prático, graças à revolução científica e tecnológica do século XX, que ainda está em curso, em que a própria tecnologia se tornou “ambiente” e “nutrição” - tecnologia perpassada de vida e inteligência - o novo paradigma, que pode até nos dar vertigem em seus primeiros sinais, encontra a sua melhor imagem na Internet, no seu big bang criador e no seu crescimento exponencial. Especificamente, na Internet, o atual estágio das redes sociais é a sua ponta de lança.
O cientista brasileiro Augusto de Franco, em seu site[2] e em suas lições sobre “viver na rede e da rede”[3], recorre a três modelos de laços sociais para avaliar a atual revolução da compreensão da natureza do “social” que, na verdade, sempre esteve na base das sociedades estruturadas mas que hoje se impõe de forma globalizada praticamente inexorável. Vou me servir desses modelos para ir depois às consequências religiosas e eclesiais – inclusive “eclesiásticas”.
Embora se deva contar com tensões, com conflitos e incongruências, as novas tecnologias de comunicação estão amplificando e disponibilizando em larga escala uma forma de conexão, de interação e de laços sociais que a antropologia reconhece como a primeira plataforma na formação da humanidade: a conexão espontânea, aleatória, fortuita e gratuita. É o que pesquisadores da área chamam de interconectividade e interação com informação distribuída. Para entender seu papel na atual mudança, aqui estão os três modelos de estruturação do social, segundo as figuras de sociedades abaixo: centralizada (A); descentralizada (B); e distribuída (C).

O primeiro modelo é o de sociedades organizadas de forma centralizada: estruturadas por poderes e saberes centralizados e hierarquizados, verticalizados e concentrados no topo ou no centro, já que os modelos geométricos poderiam ser tanto a pirâmide como a esfera. Através de muitas mediações e caminhos tudo parte de um ponto de chefia, passando por sub-chefias, num fluxo único da “in-formação” e de comando de ação. O melhor exemplo são os reinos absolutistas, os impérios. Isso se refletiu na Igreja “romana” porque a Igreja foi herdeira de um dos mais emblemáticos impérios, justamente o romano com sua genialidade jurídica e institucional altamente centralizadas. Embora a Igreja, por sua fonte dessacralizadora de todo absoluto que não seja Deus, tenha se mantido normalmente em tensão com o império, tanto no Oriente como no Ocidente. No entanto, a “reforma gregoriana” da Igreja latina, na virada do primeiro para o segundo milênio, centralizou fortemente a Igreja na figura do papa num poder simbolizado na tiara com três coroas, que teve vida longa. O último dos grandes impérios altamente centralizados talvez tenha sido a União Soviética, que desmoronou sob seu próprio peso. O que hoje alguns insistem em chamar “império americano” funciona numa nova lógica, e talvez não se deva mais caracterizar como “americano” já que, tratando-se do Global Market, não tem propriamente pátria e todo lugar pode ser pátria – uma estranha “catolicidade” que lembra a célebre Carta a Diogneto. Hoje não há organização que funcione realmente de forma totalmente centralizada. Mesmo os “impérios” industriais, de comércio, de comunicação, etc. passam para o segundo modelo.
O segundo modelo é o de sociedades descentralizadas, compostas de conexões de muitos centros, com muitos nós de distribuição de informação e de poder. É a tendência dominante hoje nas instituições industriais, comerciais, de comunicação, de serviços, etc. Trata-se de “departamentos”, de conglomerados, holdings, ou então as grandes multinacionais que portam para cada país o nome mesmo do país, como HSBC Brasil ou Coca-cola Brasil. Ou uma universidade com diversos campi espalhados pelo país. Talvez aqui caiba também o modelo geométrico que o papa Francisco evocou no lugar da esfera, o poliedro (cf. EG 236). Ou seja, uma configuração que comporta “polígonos”, muitos pontos que confluem e se conectam, mas cada parte guarda também a sua própria originalidade regional, seus próprios saberes e poderes, suas tradições. Segundo o papa, uma sociedade na configuração do poliedro tem capacidade de reunir e conservar o melhor de cada parte. Inclusive os pobres, com sua cultura, seus projetos e potencialidades, são respeitados e encontram seu lugar, e até os que erram podem ter algo a oferecer. O modelo mantém organização e disciplina estável ainda que de forma descentralizada, devendo eventualmente alguns centros passar informação e obediência a outros centros, na forma de filiais. Uma Igreja de participação e comunhão, como comunidade de comunidades, onde não mais a paróquia como tal mas os grupos eclesiais organizados são a célula básica, cabe neste segundo modelo, que é o modelo “do meio”, no qual podemos reconhecer muito de nós mesmos.
O terceiro modelo, nascente agora em nova escala, embora sempre existente, tem na Internet a sua configuração, como já disse e volto a frisar. Caracteriza-se por conexões ou redes com informação e interação cada vez mais disponíveis e distribuídas, e cada vez com menos mediações. Cada ponto pode se conectar com todos os seus vizinhos diretamente e pode se movimentar livremente na rede, conectando-se imediatamente até pontos os mais distantes e antes impensáveis. Por isso já não é mais modelo nem descentralizado, é tecido de conexões sem centros, sem nós de confluência e regulação, é tecido de interconectividade e de interação que se multiplica de forma exponencial e sem controles, graças à internet. Assim, os fluxos de informação e de influência, o saber e o poder, ficam totalmente abertos, distribuídos, retroalimentados, reforçados, sem criar centros. Os centros eventuais são efêmeros, criam-se, dissolvem-se, recriam-se em outra forma... A melhor figura não é mais geométrica, é a livre iniciativa das postagens entre “amigos” na internet, no Facebook, ou os “seguidores” no Twitter, ou ainda simplesmente ao acessos à rede. Mas também as novas formas de relacionamentos urbanos, que podem aglomerar espontaneamente para improvisar uma happy hour num bar da vizinhança, como podem também derrubar governos, como aconteceu nas primaveras árabes. Assim foram também Occupy Wall Street, Los indignados, e a tendência das atuais manifestações que revelam outra ordem social desde sua forma de começar, de acontecer, de se diluir, de se refazer, de aparecer de novo metamorfoseada.
A interatividade, em outras palavras, começa na rede “eu e meus amigos, e os amigos de meus amigos, que também tem amigos”, É a egonet que alcança até três círculos espontâneos de conexões, sem hierarquia ou chefia. Esses “amigos” todos tendem a se conectar entre si e a alimentarem e se nutrirem com novas interações, multiplicando para fora da egonet exponencialmente em miríades de redes. Importante é a mudança da forma de relação que constitui esse novo tipo de sociedade: em qualquer um desses ambientes - no Facebook, no Whatsapp, no Twiter, no Google Plus, etc. - padre ou político ou professor – seja o presidente da república, o cardeal ou o líder de uma facção – todos viram “apenas amigos”, ou então “cidadãos todos iguais e comuns” no sentido de “conectados”, “em comum” e em “interação”. O bispo é amigo do seminarista ou do crismando, e estes não precisam mais passar suas informações através do formador ou do pároco para uma troca de ideias diretamente com o bispo. Dilui-se a mediação, a hierarquia e a centralidade.  
A interatividade na rede, é importante observar bem por causa de suas consequências, além de não ter hierarquia, não tem mediações fixas, e acontece cada vez com menos intermediários por seu fator de acesso, retransmissão e multiplicação exponencial. O melhor exemplo é a “viralizaçao” de uma informação, de um vídeo, que, em pouco tempo tem milhões de acessos em todos os continentes. Quanto mais se estende, mais aleatoriamente e rapidamente acontece, fazendo coincidir no instante o tempo e o espaço, o que chamamos de “em tempo real”.
Esta nova conformação social que nasce em nosso tempo por interconectividade e interatividade como um novo big bang, não é igual a participação, segundo as observações e distinções de Augusto de Franco. “Fazer parte” é possível nos dois modelos anteriores. Supõe a existência de algo já existente e proposto, no qual se pode seguir um líder, ter um coordenador ou uma maioria decisória, com decisões vindas de alguma forma de autoridade ou de uma maioria após debate e votação que no final se impõe a todos. A participação é do membro de um partido, de uma facção, de uma confraria, de uma congregação, de um corpo do qual se é membro, de uma comunidade estável, normalmente anterior ao membro que dela participa, portanto diz respeito também a uma Igreja. A participação dá o “sentido de pertença”, de ser membro e parte de algo maior. Mas a atual conectividade e interação descolam das pertenças estáveis já determinadas, e possibilitam exercer em grande escala, em multidões, o grande ideal da modernidade: a autonomia dos sujeitos, onde cada sujeito se abre livremente e criativamente a um mundo de possibilidades, segundo afinidades eletivas e eleições de fato. Cada pessoa não é um “indivíduo privado”, fechado numa mônada com relações já estabelecidas e ritualizadas por alguma forma de poder, mas despojada e aberta aos fluxos, debates, discernimentos, ainda que deva confiar em suas asas na  fluidez meteorológica dos nossos tempos.
Este terceiro modelo, embora seja o modo de vida das sociedades mais simples em pequena escala, assume hoje, por sua potencialização planetária, um modus essendi et vivendi para o qual estamos migrando coletivamente e massivamente. Não temos ainda nem poderíamos ter clareza sobre todos os seus aspectos e efeitos, mas seus sinais se mostram como realidades eficazes, com consequências muito reais. Se podem até derrubar governos, como já aconteceu, poderão também derrubar os ídolos sagrados do Global Market? Como Igreja, poderão assim se derramar os carismas do Espírito numa comunhão toda carismática e toda ministerial, o que se diz que deve ser a Igreja? Poderiam apontar na direção do sonho de Joaquim de Fiore, de um tempo de afinação de um só corpo e uma só alma no Espírito, superando a cidade das misturas de Santo Agostinho? Poderíamos estar diante da possibilidade de uma nova e mais ampla catolicidade pentecostal? Ou é fantasiar demais?  
Segundo Augusto de Franco, não é necessário passar dos modelos anteriores, o primeiro como imperial-hierárquico, o segundo como dioceses, matrizes e capelas, para chegarmos finalmente ao terceiro de redes totalmente distribuídas. Pode-se nascer e viver na rede. Por isso interessa seguir sua formação, que pode ser descrita em quatro passos:
1.       Aglomeração (clustering): a conexão e a interação tendem a criar gravitação, ou seja atração, que aproxima e aglomera, desde os aglomerados estelares até a turma à beira de um campinho de futebol de várzea, o grupo de jovens na pracinha da capela ou na secristia, ou motoqueiros junto a um posto de gasolina, etc.
2.       Enxameamento (swarming, flocking): os aglomerados tendem a interagir com movimentos como os dos pássaros em revoada ou dos peixes em cardume que, voando ou nadando velozes em aglomerados, mesmo mudando rapidamente de direção, não tem um comandante, um líder, nem uma hierarquia, e no entanto não se batem, não se atrapalham, estão altamente organizados. Dançam com estética invejável. Há peixes que murmuram em coro, há insetos e pássaros que fervilham e parecem bem combinados. Humanos aglomerados pela interatividade também se tornam um evento em movimento mesmo sem um líder, sem distribuição de papéis especiais. Há uma “swarming intelligence, uma espécie de inteligência grupal, coletiva, que só emerge nessa interação conjunta. Um bom exemplo é a dança improvisada em certos grupos africanos, que começa com duas ou três pessoas e vai atraindo e agregando mais gente até chegar a uma performance de multidão fervorosa numa dança sincronizada mas espontânea ainda que pareça ter sido bem ensaiada. Costuma-se, às vezes, dizer: “Se tivéssemos combinado ou ensaiado não teria saído tão bem!”
3.       Imitação (cloning): Sai-se bem quem exerce a capacidade cada vez mais veloz de copiar. Nunca se copiou e se colou tanto como na cultura da informática e da cibernética. A escola de hoje não consegue mais proibir a cola. Pelo contrário, é pela colagem e pela imitação que se faz o percurso de ser si mesmo e ao mesmo tempo contribuir para uma inteligência em conjunto. Um curso elementar de piano deve imitar Bach e Chopin, um curso de pintura deve imitar Van Gogh, um curso de Jazz deve imitar passos, até alcançar a própria originalidade. O mimetismo é a internalização do que o grupo, o “emaranhado”, faz e pensa. Na dança, como na revoada dos pássaros, a ordem é “copie o vizinho!” – e todos acabam imitando todos numa performance de comunhão e numa realização que só a ação em conjunto pode permitir e explicar. Este é também o percurso do consenso antes mesmo da consciência, é um com-sentimento.
4.        Compactação (crushing): O emaranhado adquire solidez com a interação exponencial.  As distâncias estão diminuindo exponencialmente também. A expressão “em tempo real”, como o Just in time significa isso – tempo e espaço compactados, coincidindo no instante. Assim, “num instante” estaremos virtualmente todos ligados, de tal forma que todo mundo começa a ter mais chance de conhecer e ser conhecido, de ser “famoso” sem precisar ser especial, nem herói nem super-homem, basta estar conectado. De certa forma, vamos nos tornando uma aldeia sem campanário e sem coreto das autoridades. Mas não é anarquismo que gera conflito, o bater-se da desordem e do caos. É outra ordem, “ordem distribuída”, com uma nova forma de poder: quando o emaranhado começa a fervilhar e a mover, há uma energização, um “empoderamento” (empowerment) que é uma forma nova de exercer o poder. Hannah Arendt já tinha definido bem esta forma de poder como “capacidade de ação em conjunto”, que diz muito da nova forma da obediência não mais mecânica mas de interações distribuídas.

A transição de um modelo para outro apresenta passagens e momentos críticos. Pode haver insegurança e reações diversas, até porque em nenhum modelo a sociedade é por si mesma somente boa e positiva. Violência e abusos, injustiças e corrupção, perdas e fracassos, tudo pode ocorrer em qualquer dos modelos. O modo em que acontecem é que os diferencia. Além disso, como em toda transição, não se trata de substituição pura e simples. Os modelos precisam conviver até por tempos longos. Não se pode deixar de levar a sério o modelo envelhecido mesmo sabendo que está decadente, mas sem poder deixar de experimentar o novo, que exige uma nova alfabetização, como uma conversão. Por isso o primeiro passo para uma boa transição é sempre o do reconhecimento e despojamento.
De qualquer forma, o isolamento e a autoproteção diante de uma realidade altamente interativa com informação distribuída, daria em perda de sustentabilidade, perda de antenas, e esclerose, perda da alostase, esta capacidade de relação e interação viva com o que está em torno de forma a manter crescimento e transformação ( é o que se entende por alostase: em contato com outros, ir se transformando, tornando-se “outro”). A teimosia em permanecer nos modelos que se tornam disfuncionais, além do enrijecimento, portanto esclerose, paga o preço da irrelevância, serve apenas ao folclore, como certas rainhas e certos vestuários solenes.
O modelo de interação com informação distribuída pode ser encontrado já nos seres vivos pluricelulares mais primários: as células não erguem paredes, não são mônadas encasteladas, elas tecem membranas permeáveis, fronteiras receptivas para trocas de informação e de nutrição. É também a autopoiesis molecular (Maturana e Varela), em que o ser vivo se mantém sujeito autônomo na mesma medida em que é capaz de interação. Mantém, assim, a alostase – tanto a boa relação com o que é diferente que informa e nutre, como a possibilidade de ir se tornando diferente, de se transformar. Quem perde contato e permeabilidade perde a capacidade de alostase, não muda, e a defasagem levará à falência.
Enfim, o modelo de rede interativa com informação distribuída muda não só o modo de se comunicar, mas também de aprender, de trabalhar, de administrar, de governar. O interesse não é mais o de se tornar chefe ou rico, competir, fazer carreira e ter sucesso  – isso é visto como carcaças pesadas – mas o de fazer experiências significativas, criativas, agregadoras, ainda que parecendo “desajustadas” pelo sistema que é atualmente hegemônico. É, por exemplo, o que acontece com jovens que preferem arriscar um intercâmbios ou um estágio em outras línguas do que um emprego e uma carreira estável.

Para concluir esta parte, são importantes três observações:

1. Como já acenado, este terceiro modelo de “tecido social em rede” – netweaving - é, na verdade, o mais originário: existiu e ainda existe nas sociedades mais simples, assim como continua a existir na base ou nas margens ou nos interstícios das sociedades marcadas por hierarquias e papeis rígidos. O “povo” vive cotidianamente assim, nos bairros de periferia, nos cortiços, na informalidade. É o caso dos amigos, dos compadres, da vizinhança, justamente o que é mais essencial e decisivo em momentos cruciais. Mesmo o gerente engravatado de uma empresa durante a semana tem no sábado seu grupo de amigos em bermudas onde todos, ainda que na empresa estejam hierarquizasdos, se tratam com igualdade e as informações fluem em todas as direções.

2. Um modelo, na realidade, nunca é puro, e é difícil imaginar uma sociedade inteiramente sem centros e com tudo inteiramente distribuído. Parece mais compatível com a realidade social que ela, justamente em sua complexidade, se desenvolve para centros, para nós de conexões, ao mesmo tempo em que anda na direção contrária, para a espontaneidade das relações diretas totalmente distribuídas. Pode-se encontrar estas “camadas” de modelos ao longo da história, das culturas, do cotidiano.[4] A Igreja mesma pode ser situada simultaneamente nos três modelos, enquanto ela tem alguns aspectos inteiramente centralizados – tudo o que se refere a Roma, por exemplo -, tem em suas dioceses e comunidades paroquiais uma organização mais ou menos descentralizada em muitos centros conectados, com hierarquias mais distribuídas, conforme o modelo do meio, o segundo modelo. Mas a Igreja tem na verdade uma infinidade de iniciativas inteiramente sem centro, desde a transmissão da fé passada de forma familiar, por vizinhança, iniciativas de caridade e de oração, etc. que não precisam e de fato não tem comando hierárquico. Passam às vezes pelas janelas entre vizinhas.  Mas aqui importantes são as tendências: qual o modelo mais funcional no atual estágio do mundo em que todo mundo, até a criança numa comunidade dos Andes ou da “África profunda”, anda de celular na mão, sabe o que é um tablete e assiste futebol europeu transmitido via satélite?
3. A interação com informação inteiramente distribuída – lembrando que informação é sinônimo de nutrição e de trocas desde as células e moléculas  – remete a uma exortação aparentemente estranha de São Francisco aos seus irmãos, de que cada um seja para o outro mais do que uma mãe que nutre seu filho.[5] A amamentação é a interação e a informação mais fundamental e mais completa, entre as primeiras conexões de vida autopoietica e alostática. Se, porém, nos remetemos diretamente para Jesus andando pela Galiléia, não se furtando aos que acorriam para escutá-lo e para serem curados, tomando barco e encontrando pequenas multidões, agindo e reagindo – interagindo, portanto, de forma recursiva - numa rede caracterizada pela espontaneidade, pela amizade e até cumplicidade sem fronteiras – onde mulheres e crianças, como pessoas de qualquer origem ou posição social – o centurião, o doutor da lei, o publicano, o fariseu, o leproso – se aproximavam e eram atendidas sem acepção de pessoas, culminando na mesa comum do pão partilhado, da eucaristia no cenáculo da manhã da Páscoa e de Pentecostes, na densidade de informação carismática do Espírito Santo a todos os que creem, nas reuniões pelas casas e pregações em praças e corredores do império, então temos aí a narrativa da criação de uma rede com alto empoderamento, que está no big bang da história cristã: Entre Jesus e o Espírito, Encarnação e Pentecostes.

Em conclusão: as consequências para a religião em geral e para a Igreja em particular, como para as abelhas e borboletas da VRC, num primeiro momento parecem devastadoras: no terceiro modelo caem todo centro, toda hierarquia, todo controle, toda reserva de poder e delegação de poder. A religião estruturada em instituições, como todas as grandes instituições tradicionais – o Estado, a Escola em todos os níveis, a família e até o gênero enquanto hierarquia de papéis - está em grande crise. Junto com sua perda de relevância entram em crise a fé e a esperança articuladas por sua mediação. É necessário reconhecer hoje uma imensa crise de fé que perpassa inclusive o clero e a VRC. O fundamentalismo que reage com dureza, retirando dos velhos modelos fragmentos que deveriam estar em museus são como estertores que testemunham a crise e a mudança, até porque os próprios fundamentalistas utilizam contraditoriamente, com excessão da seita dos Amish na Pensilvânia e de algumas comunidades Menonitas, as mesmas novas redes e tecnologias de comunicação, de atração, de mimetismo e compactação, seguindo os quatro passos indicados acima. Basta conferir tanto o modus operandi do Estado Islâmico como os vídeos postados na Internet que defendem o uso da batina tradicional, etc.

5.                  Três clamores à religião, à Igreja, à VRC.


As novas condições sociais estão dando três indicações, que são inclusive três clamores num sentido amplo, e que podem merecer respostas específicas como diálogo, exercício, testemunho eclesial e da VRC, para o que é necessário ser “como o bom mestre que se tornou discípulo do Reino de Deus e que, como um pai de família, sabe tomar do seu tesouro recursos novos e antigos” (Mt 13, 52):

5.1. O clamor da mística
Para além das formas tradicionais de religião, a espiritualidade continua a ser uma busca que caracteriza o ser humano, e portanto conta muito, até mais em tempos de crise e de caos, pois só uma espiritualidade criativa, ao mesmo tempo sólida e capaz de oferecer energia, também socorre como remédio e inspiração.
Nesse sentido, a centralidade da Palavra de Deus, a leitura orante, o exercício do silêncio, enfim os recursos que a história do cristianismo oferece, não são um luxo descartável mas um ponto crucial nas condições contemporâneas. No entanto, será bem importante não confundir a oração com autoajuda narcisista, e para isso são necessários os elementos que socorrem os outros dois clamores: a comunidade e a missão. É exemplar o trabalho do filósofo italiano Giorgio Agamben em Opus Dei ao recuperar, como inspiração para sociedades seculares contemporâneas, o sentido monacal do Ora et Labora, a liturgia, a espiritualidade efetivamente exercitada em comunidade, não apenas teorizada, como inspiradora e modeladora do conjunto da vida, inclusive da vida política, dando-lhe coerência e profundidade.[6]
5.2. O clamor da comunidade.
Em tensão com o valor do indivíduo, da autonomia e da dignidade da pessoa, a valorização da comunidade, do laço de pertença com estabilidade minimamente suficiente, a entrega a uma comunidade de cuidados recíprocos, é ao mesmo tempo um clamor e uma graça. Ate mesmo os cursos de treinamento, de Coaching, enfatizam a criação de equipes inspirando-se em regras de comunidade.[7] Peter Block, em seu community, the strucutre of belonging, oferece critérios e dicas práticas de como criar e cultivar comunidades numa sociedade secular, inclusive no mercado enquanto gestão e produção em conjunto.
O mais significativo, no entanto, em termos de comunidade, segundo o autor já citado, é a busca de ancoragem na experiência de pertença e na partilha, no laço de reconhecimento e de acolhimento, de hospitalidade e compromisso mútuo com duração no tempo, ou seja, em termos mais tradicionais, na fidelidade aos laços através de sua renovação continuada, dialógica, transparente.
Já Giorgio Agamben, em relação à comunidade, nos surpreende com um instigante texto, Altíssima Pobreza, em que explora as regras de formas de vida comum na tradição da Igreja. [8] Trata da ousadia, em meio a sociedades medíocres, da iniciativa “inspirada” de criar um espaço de vida onde as normas, os valores, as relações, se tornam outras, alternativas, diferentes da sociedade em torno, com legitimação mística, mas, de novo, como na mística, não algo teórico e sim efetivo e estável.  A expressão Íncipit vita nova ou então “Esta é a regra e a vida...” para sinalizar que a entrada em uma comunidade destas era como entrar em um mundo novo, não era apenas um tratado de conversão, era a aquisição de um novo ser em uma nova comunidade. A linguagem, até mesmo a narrativa, tinha/tem a força de regra, modelando realmente uma nova “constituição” social, um “direito” próprio eficaz. A dose de liberdade, de ousadia e “empreendedorismo” na criação de comunidades pode hoje ser vista como inspiradora se partir de um ponto “sagrado”, um “texto sacro” que legitime e sustente. E novamente aqui, é necessário saber tomar do tesouro recursos novos e antigos, combinando os três clamores: a mística e a missão com a comunidade.

5.3. O clamor da missão
Se levarmos a sério a mudança de modelo em direção à rede, o terceiro modelo examinado acima, não é a administração de obras, mas a missão - de peito aberto em linha de frente, em “fronteiras, desertos e periferias” - que poderá suscitar atração sem mediações complicadas e assim também vocações genuínas e não acomodações. Claro:  junto a uma mística sólida e uma comunidade saudável. A missão corresponde à preocupação com uma “Igreja em saída”, superando o narcisismo da autorreferencialidade. E corresponde à razão central para legitimação de existência de uma Igreja organizada: a evangelização, segundo a Evangelii Nuntiandi, Aparecida e Evangelii Gaudium. Nesse contexto é bom lembrar os quatro princípios que o papa Francisco enuncia na Evangelii Gaudium: 1. “O tempo é superior ao espaço”; 2. “A unidade prevalece sobre o conflito”; 3. “A realidade é mais importante do que a ideia”; 4. “O todo é superior à parte” (Cf. EG 217-237). Aqui, no entanto, é importante sublinhar o foro de cidadania que a religião ganha em sociedades seculares quando a missão está voltada para a construção do Bem Comum, da justiça e da paz social, segundo a mesma Evangelii Gaudium 217ss.
Num contexto social líquido e flutuante, a busca de plataformas comunitárias sólidas pode empurrar para a tentação fundamentalista de colocar a própria comunidade e a sua sobrevivência como real e sutil finalidade última da missão. Isso, em médio prazo, leva a fechar a comunidade sobre si mesma, começo de sua decadência. A missão - a evangelização – provoca a permanecer de portas abertas, em conexão com outras forças da sociedade, e assim também areja e dá substância à comunidade e à oração. Enfim, não é novidade que estas três colunas mestras  precisam estar tão bem articuladas como a pericorese trinitária entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo.
E novamente aqui Giorgio Agamben nos surpreende com um estudo exaustivo da correlação entre mística, teologia, política e economia ao longo da história da Igreja, um estudo paciente e cuidadoso em seu livro O Reino e a Glória[9]. Por exemplo, pergunta-se porque, mesmo numa sociedade secular, cuja política não tem referência legitimadora num princípio sacro transcendente, continua a necessidade de formalidades e exaltação do governo, de “liturgia do poder”? Porque há elementos “sagrados” na economia, como, por exemplo, o pagamento de dívidas e o próprio dinheiro? A leitura de Agamben traz recursos com uma teologia e uma liturgia políticas e econômicas. É neste arcabouço que o Ocidente moderno se estruturou por mais de milênio. Para nossa surpresa, inspirando-se em Erik Peterson, famoso por seu livro Monoteismo como problema político em que nega uma teologia política de bênção aos poderes vigentes no mundo, e que, logo em seguida, escrevendo curiosamente sobre anjos, emposta o lugar da política e da economia numa teologia bíblica, Agamben aprofunda o papel angélico da fé cristã. Percorre uma detalhada angelologia que se estende pela patrística e pela escolástica e que é de proveito no trabalho deste pensador: anjos que “assistem” a glória divina, e anjos que são “ministros” como mensageiros e autoridades com quem Deus partilha a providência e o governo do mundo, portanto, de caráter político e econômico, inclusive midiática de Deus.  Portanto, anjos litúrgicos e anjos missionários, espelhamento do que significa estar na presença e ao mesmo tempo colaborar com Deus em sua obra. A própria hierarquia angélica toma aqui um sentido simbólico e eficaz, o que legitima e ao mesmo tempo critica as hierarquias que emergem na terra dos homens: se realmente servem à verdadeira glória que coincide com a economia e a política de Deus providente, a justiça e o bem de suas criaturas.
Porque, afinal, há também demônios, e há uma demonologia e até “anticristo” – inclusive no plural – que são possibilidades da religião e do cristianismo em particular. Não falta quem veja, como Ivan Illich e Pierre Legendre, o desenvolvimento da modernidade como uma perversão demoníaca e o aparecimento do “anticristo” que parte de dentro do próprio cristianismo, um formalismo canônico que se manteve com legitimação bíblica até a modernidade mas que já não tem nem referência e nem legitimação, sobretudo em relação aos novos poderes sociais e tecnológicos surgidos agora, diante dos quais estamos todos sob o risco da exceção e da violência “nua”, sem legitimação e sem defesas institucionais.[10] A perversão não é a única possibilidade de interpretação dos tempos de crise extrema e perigosa mudança em que vivemos, pois ao se considerar os direitos humanos podemos dizer que são um avanço que tem raízes evangélicas e agora tem condições de criticar a própria religião, inclusive a Igreja.
De qualquer forma, a missão “nua”, na linha arriscada da fronteira, do deserto e da periferia, depois de todo diálogo e parceria, pode ainda ter que se manter em postura profética, angariando mal-entendidos e perseguições. Esta verdade, que é um teste e um testemunho, tem também uma longa história no tesouro da experiência cristã. E aqui entra o “sacrifício” com sua atração e repugnância ao mesmo tempo, a ignomínia da cruz (Hb 13, 13) o escândalo e a loucura (1Cor 1, 17-31) que estão no coração da legítima fé cristã. Porque “não temos aqui embaixo cidade permanente, mas estamos á procura da cidade que está para vir” (Hb 13, 14).  
Conclusão: Uma nova catolicidade.
Esta mudança de época tão global e radical vai exigir páscoa - morte - para que haja ressurreição. Em termos institucionais não deveríamos ter muito medo de morrer, embora seja sobre as instituições que o axioma medieval recomenda: non multiplicanda entia sine necessitate – não se multipliquem as instituições sem (real) necessidade. Porque elas passam a seguir um princípio ontológico esclarecido por Spinoza, o conatus essendi: “todo ser faz todo esforço que está em si para perseverar no seu ser” (Ética III). Nenhum ser, e em nosso caso, nenhuma instituição, aceita morrer, mas fará de tudo, até desastres, para se manter existindo. Saber decretar o fim de instituições pode ser uma dolorosa sabedoria.
Por outro lado, este tempo pode ser saudado como aurora, ainda confusa em seu lusco-fusco. O lusco-fusco do fim, do anoitecer, e o do começo, do amanhecer são tão iguais que podemos não distinguir se estamos morrendo ou (re)nascendo. Que seja aurora é uma profissão de fé tipicamente profética:  aurora de um tempo em que tudo será novo, inclusive a religião, a Igreja, a VRC. Uma nova catolicidade pode emergir desta radical globalização, do terceiro modelo - de vida em rede, ecológica, com um novo sentido da catolicidade, composta de diferentes “línguas, povos e nações”, com uma nova linguagem, um “holograma” pentecostal, ao mesmo tempo empoderada pelo Espírito e encarnada num grande Corpo de Cristo, para além de qualquer parede institucional e aquém de todo corpo de carne e osso, corpo e sangue de toda criatura: “Não fiquem lembrando o passado, não pensem nas coisas antigas Eis que estou fazendo uma coisa nova, ela está despontando agora, e vocês não percebem?” (Isaias 43, 18-19).



[1] Neste quarto ponto retomo o meu texto já publicado no opúsculo para o 16º Encontro Nacional de Presbíteros, Presbíteros no Brasil: a Alegria no anúncio do Evangelho - “Eis que faço novas todas as coisas!” (Ap. 21,5). Editado pelo Conselho Nacional de Presbíteros, abril de 2016. Pode-se, no entanto, ler apenas o primeiro e o último parágrafo desde ponto sem prejuízo da compreensão global do texto.
[4] Encontram-se narrativas dessa tensão entre sociedades estruturadas por papéis, funções e hierarquias de um lado e de outro por tempos ou espaços ou grupos em intensa comunhão na interação e na igualdade sobretudo em ritos de passagem. Cf. TURNER Victor, O processo ritual. Estrutura e anti-estrutura. Petrópolis: Vozes, 1975.
[5] É uma imagem recorrente do santo: todos têm capacidade de nutrir como mães uns para os outros. Por exemplo: “E, onde quer que estejam e se encontrarem, os frades mostrem-se familiares mutuamente entre si. E com segurança manifeste um ao outro sua necessidade, porque, se a mãe ama e nutre o seu filho carnal, quanto mais diligentemente deve cada um amar e nutrir seu irmão espiritual?” (Regra bulada 6, 7-8).

[6] Cf. AGAMBEN Giorgio, Opus Dei. (Homo Sacer II, 5). São Paulo: Boitempo, 2013.
[7] Cf. por exemplo o best-seller de Peter Block, Community, the structure of belonging. San Francisco: Berret-Koehler Publishers, 2008. Agradeço a preciosa indicação do Ir. Evilázio Francisco borges Teixeira.
[8] Cf. AGAMBEN Giorgio, Altíssima Pobreza. Regras monásticas e forma de vida. (Homo Sacer IV,1).
[9] Cf AGAMBEN Giorgio, O Reino e a Glória, uma genealogia teológica da economia e do governo. (Homo Sacer, II,2). São Paulo: boitempo, 2007.
[10] Cf. ILLICH Ivan & CALEY David, La corruption du meilleur engender le pire. Arles : Actes Sud, 2007. LEGENDRE Pierre, L’autre Bible de l’Occident : le monument romano-canonique. Étude sur l’architecture dogmatique des societés. Paris : Fayard, 2009.

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