Pe.
Tomaz Hughes SVD
“Não fiquem lembrando o passado,
não pensem nas coisas antigas...”(Is 43, 18)
.
É comum hoje, ao
analisar o contexto neoliberal pós-moderno em que vivemos, falar que estamos
numa época em que tudo é “líquido”, ou seja, sem formas fixas e definitivas, em
constante mudança. A história da caminhada do Povo de Deus está repleta de
exemplos desta constante ação criadora e recriadora de Deus. Na verdade, pode
ser visto como uma série de crises que, para quem tinha
o olhar de fé para enxergar além das aparências, eram, na verdade,
oportunidades para aprofundar a vivência da experiência da presença do Deus da
vida. Assim, por exemplo, a série de crises na
caminhada no deserto, especialmente os problemas causados pela natureza, falta
de água (cf. Ex 15,22-27), falta de comida (cf. Ex 16,1-36), água amarga (cf. Ex
17,1-17), eram oportunidades para amadurecer a fé. Havia também desafios causados pelos homens: os
perigos provenientes dos inimigos de fora, como os amalecitas (cf. Ex 17,8-16),
e os perigos no interior da própria comunidade, como a centralização da
liderança (cf. Ex 18,1-27). Assim também foi durante a dura experiência do
Exílio em Babilônia, bem como as reflexões dos profetas, salmistas e sábios. Não
foi diferente com Jesus de Nazaré e com as
primeiras comunidades.
Na verdade, era algo
constante na experiência do povo, desde a sua formação até o Apocalipse. Para
muitos, cada crise significava o fracasso do projeto, mas, para quem tinha a
sensibilidade para enxergar a ação do Espírito, as crises eram oportunidades de
crescimento, aprofundamento e avanço no projeto de Deus.
A
semente que quer germinar
Qualquer análise da
situação da VRC hoje, especialmente na sua forma da “vida apostólica”, aponta
para um contexto de crise. Sinal do fim do projeto ou oportunidade de renovação? Pessimismo
ou otimismo? Sinal da morte ou de vida
nova que começa a brotar? Como em tudo
que é humano, existe certa ambiguidade inerente no panorama da VRC hoje. É sempre assim com a história humana. O Povo de Deus da Primeira Aliança também
passou por experiência semelhante, que talvez pudesse ter assinalado o fim e a caducidade
de um projeto que durava séculos. Na verdade as crises eram arautos de uma experiência mais profunda de Deus, na
fé e na esperança, e que vingou, graças à acuidade do olhar de alguns homens e
mulheres que conseguiram libertar-se da camisa-de-força estrutural de uma
tradição mal compreendida, para descobrir a ação criadora permanente de Deus,
exatamente no meio do que parecia ser uma crise sem saída.
O Exílio em Babilônia – a Crise Definitiva
De fato, aconteceram muitos exílios na história do Povo
de Deus, alguns até mais definitivos do que aquele que aconteceu depois da
queda de Jerusalém diante do exército de Nabucudonosor em 587 a.C.[2]. Mas quando se
fala em “O Exílio”, sempre se pensa na experiência referencial daquele
desterro da
Babilônia. É importante entender o motivo disso e, quem sabe, ver alguns
paralelos com a situação da VRC nos dias de hoje.
O cerne da questão não foi somente o fato de uma boa
parcela da população ser desterrada. O choque foi muito maior, por força da
destruição de uma série de certezas que fundamentavam a fé e a ideologia
religiosa oficial reinante no seio do povo. Simplificando, podemos elencar algumas dessas certezas:
- Como sinal da sua predileção, Deus tinha garantido a
posse da terra ao seu povo, em perpetuidade.
- A teologia davídica, nutrida nos meios palacianos e
sacerdotais de Jerusalém, enfatizava a promessa de Deus de que um descendente
de Davi reinaria sobre o seu povo para sempre.
- Jerusalém fora escolhida por Deus como cidade da sua morada perpétua.
- De maneira especial, o Senhor fixava a sua morada no
Templo de
Jerusalém e somente ali é que seria adorado.
Esses
princípios, entendidos como promessas provenientes do próprio Deus, se
propagavam como alicerces da fé do Povo como povo escolhido. Isso criava na
prática, especialmente entre a elite, um descuido com a Aliança e seus
princípios, e ajudava a encobrir a arrogância e a prática da injustiça, camuflada
pela teologia hegemônica.
Por
conseguinte, quando em 587 o povo ficou sem terra, sem rei, sem cidade e sem
Templo, para muitos ruíram não somente os muros de Jerusalém, mas os alicerces
da sua própria fé. Parecia que tudo não passava de uma ilusão, que o Senhor
tinha sido infiel, que o Deus de Israel tinha sido vencido pelos deuses de
Babilônia, que a fé carecia de um fundamento sólido. Em um primeiro momento, não se enxergava que essas “certezas”
eram invenções humanas que geravam a infidelidade à Aliança e que precisavam ser derrubadas e desmistificadas, para que pudesse renascer
o povo com uma fé mais forte, pura e viva.
A
grande crise da VRC
Sem querer fazer paralelismos simplistas, parece que algo
semelhante aconteceu na Igreja e, de maneira especial, na VRC. Até o Vaticano II parecia que nós estávamos
seguros na nossa identidade e missão, tanto dentro da Igreja como diante do mundo. Nós mais idosos com certeza vivíamos alguns
anos nesse contexto, nessa visão. Na verdade, a história iria mostrar em pouco
tempo a fragilidade dessas seguranças, da mesma maneira como se encarregou de
desmascarar a falta de fundamento das bases da organização religiosa e política
de Israel e Judá. Este processo é mais do que conhecido, especialmente pelos
religiosos e religiosas que experimentaram na pele o “tsunami” de desistências,
rachas e divisões que atingiam grandes parcelas da VRC nos anos imediatamente
após o Concílio Vaticano II.
Para muitos
e muitas se deu um senso de perplexidade muito semelhante àquele que assolava
os exilados no desterro babilônico.
Parecia que o tapete havia sido
puxado de debaixo dos nossos pés e ficou uma sensação de vazio e confusão que, em muitos casos, continua até os
dias de hoje. Se antes a nossa
identidade parecia clara a partir da nossa vocação à
santidade, das nossas obras e da nossa identidade missionária, de repente vimos
que o Concílio Vaticano II afirmou que existe a
vocação universal à santidade, que todo cristão é missionário, e que não
precisa ser religioso ou religiosa para desenvolver as atividades típicas do
nosso apostolado. Cada vez mais se fez sentir a necessidade de responder uma pergunta básica: se para fazer o que eu faço não é
necessário ser religioso/a, e se todos têm a
mesma vocação à santidade, então por que sou religioso/religiosa? É por não
conseguir responder a essa pergunta fundamental que muitos religiosos e religiosas hoje e, particularmente, na
Vida Religiosa Consagrada Apostólica, ainda encontram-se em crise!
Os tempos do exílio em
Babilônia eram tempos de insegurança, de perplexidade,
de questionamento, semelhantes aos tempos atuais da VRC. Para o povo de Deus, as antigas respostas
mostraram-se insuficientes para as novas indagações suscitadas pelo contexto
sócio-político-religioso novo. Mesmo assim não faltavam vozes para dizer que a
solução era voltar para as antigas estruturas, exatamente aquelas seguranças
falsas que se mostraram sem fundamento e que contribuíram para a caminhada
desastrosa de Israel e Judá. Não é muito diferente nos dias atuais:
sobram vozes sugerindo uma volta às formas antigas da
vivência da VRC, ignorando que, longe de serem firmes, essas mesmas estruturas
eram alicerçadas na areia e que reconstruir o edifício da VRC sobre elas é
garantir que toda a casa caia em ruínas. Hoje,
diante das tentações de fazer uma releitura de uma “idade áurea” da VRC – que,
na verdade, não era tão “áurea” assim – podemos meditar a sabedoria do autor do
Livro de Eclesiastes quando disse:
“Não diga: “Por que os tempos passados eram
melhores do que os de hoje”? Não é a sabedoria que faz você levantar essa
questão” (Ecl 6,10).
Muito pelo
contrário, olhemos as pessoas que mostraram o caminho a seguir, com otimismo e
fé, nos novos desafios de um novo contexto, especialmente os profetas do tempo
exílico, como Deutero-Isaías, Ezequiel e Jeremias.
A
voz da profecia
Assim,
quando o vendaval babilônico arrasou Judá e Jerusalém, para muitos era o fim de
tudo:
“Por
isso, choro e meus olhos se derretem, pois não tenho perto alguém que me
console, alguém que me reanime. Os meus
filhos estão desolados...” (Lm 1, 16).
Deus, porém, nunca
abandona nem o seu povo, nem o seu projeto.
Através das palavras de profetas como Jeremias, nos últimos anos da sua
vida, e o profeta anônimo que conhecemos como Deutero-Isaías e seus seguidores,
foi possível descobrir uma luz na escuridão, uma esperança no desespero, e a
ação permanente criadora do Senhor no meio dos destroços da antiga estrutura
teológica e religiosa do povo. Na
verdade, o Exílio não era o fim do projeto, mas uma oportunidade de renová-lo,
libertando-o dos acréscimos ideológicos e estruturais que impediram que fosse
coerente com a proposta original da Aliança. Frente à perplexidade de muitos diante
da situação atual da VRC, uma releitura dos pronunciamentos do Deutero-Isaías
pode ser muito iluminadora e encorajadora.
De posse de tantos textos de uma beleza incomum, debrucemo-nos
principalmente sobre os seguintes versículos:
“Assim
diz Javé.... Não fiquem lembrando o passado, não pensem nas coisas antigas;
vejam que estou fazendo uma coisa nova: ela está brotando, e vocês não percebem?”
(Is 43,16-19)
O ponto fundamental
para o profeta é que toda a ação salvadora provém de Deus. Deus é o
protagonista do seu projeto, e Ele escolhe Israel como seu instrumento
predileto, com um amor insondável e incondicional. Durante séculos, o povo de Deus tinha se
esquecido, na prática, dessa verdade, colocando a
si mesmo, os seus ritos e leis como o alicerce, esquecendo que o único fundamento
é o próprio Deus. Isso levou a um
deslocamento, pois, sem que notassem, o centro ficou identificado com o próprio
povo e as suas práticas religiosas, e não com a ação gratuita e amável de
Deus. Ao longo do seu texto, o Deutero-Isaías não se cansa de insistir que tudo
depende de Deus e que cabe ao povo colaborar com a graça de Deus e não substituí-lo
por si mesmo. Assim:
“...cansei-me
inutilmente, gastei minhas forças à toa, em nada. Enquanto isso, quem defendia os meus direitos
era Javé, o meu pagamento estava na mão de Deus” (Is 49,4)
Em 43,18 pede-se com
insistência:
“Não fiquem lembrando a passado, não pensem nas coisas antigas”, ou seja, não se deve fixar no passado. “O Êxodo é um
acontecimento arquetípico, mas arquetípico
para novos acontecimentos e não é o único realizado por Javé. A memória não é
suficiente. Pode até ser desmobilizadora. Precisa ser completada com a
esperança”[3].
O único Senhor da
História
Torna-se imperativo,
não somente para a VRC, mas para a Igreja como tal, relembrar que o protagonista
de tudo é Deus. A Igreja, a VRC, as Congregações, as obras são instrumentos do
crescimento do Reino, instrumentos valiosos e escolhidos por Deus, sem a menor
dúvida, mas simplesmente “instrumentos”. São como as ferramentas que Deus usa
para erguer e expandir o Reino no meio de nós. Ferramentas não são eternas, podem
servir muito bem em uma época, e ser anacrônicas e obsoletas em outra. Anos atrás, na evangelização serviam como ferramentas
o projetor de slides, mimeógrafo a álcool e álbuns seriados, só para recordar
algumas. Hoje estão substituídas, quase em toda parte, pelos novos instrumentos
de comunicação e informática. Não serviam?
Serviam muito bem, só que passou a sua
serventia e renovamos os nossos instrumentos de trabalho. Assim com a VRC: muita coisa servia e era de
grande valor, mas nem tudo serve mais.
Sem que notemos, freqüentemente identificamos
o essencial da VRC com as formas de vivenciá-la e assim ficamos confusos quando
a maré da história nos deixa de lado diante das mudanças rápidas do mundo pós-moderno. Muito oportuno, neste sentido, foi o discurso
do Papa Francisco para a Assembleia Plenária da Congregação para os Institutos
de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica, no mês de novembro de 2014,
quando insistiu:
“Como lhes recordei
outras vezes, não devemos ter medo de deixar os ‘odres velhos’: ou seja, de
renovar os hábitos e as estruturas que, na vida da Igreja e, portanto, também
na vida consagrada já não respondem ao que Deus nos pede hoje para fazer
avançar o Reino de Deus no mundo: as estruturas que nos dão falsa proteção e
condicionam o dinamismo da caridade e dos hábitos que nos afastam do rebanho ao
qual fomos enviados e nos impedem de escutar o grito dos que esperam a Boa Nova
de Jesus Cristo”.
Por isso devemos
relembrar a primeira intuição do Deutero-Isaías, que o protagonista da história
da salvação é Deus e só Ele é o Absoluto. Ele desafia o povo exilado a enxergar
a ação criadora de Deus no meio de tanta confusão, fraqueza e incerteza:
“Vejam que estou fazendo uma coisa nova: ela
está brotando agora e vocês não percebem?”
(Is 43,19).
O povo percebia muito bem o fracasso do
antigo projeto, a sua debilidade como indivíduos e coletividade, a falta de
perspectiva para o futuro, a pouca esperança.
Mas tinha uma tremenda dificuldade em enxergar o que Deus estava fazendo
brotar, uma nova missão, livre da camisa-de-força das antigas ideologias e
estruturas sufocantes:
“É muito
pouco você tornar-se o meu servo, só para reerguer as tribos de Jacó, só para trazer
de volta os sobreviventes de Israel. Faço de você uma luz para as nações, para
que a minha salvação chegue até os confins da terra” (Is 49, 6).
Luz
para as nações
Nesta
segunda década do século vinte e um, muita gente na VRC passa por experiências
semelhantes: saltam aos olhos a aparente debilidade do projeto da VRC
tradicional.
No Brasil é quase geral a diminuição no número das vocações, especialmente
para a VRC feminina; em grande parte temos o rosto de uma entidade envelhecida;
fecham-se, com muita freqüência, casas religiosas, obras caritativas, casas de
apostolados que, muitas vezes, pareciam ser a marca registrada das
Congregações. Frequentemente todo esse fenômeno
é visto como algo fortemente negativo e carece de uma análise melhor do rumo
que nossas congregações tomaram, da nova situação demográfica no país, das
novas opções abertas aos
jovens
cristãos de hoje. Será que Deus não fala
conosco como falou nas palavras do profeta para os exilados, não com tom de ira
nem aborrecimento, mas querendo nos cutucar para que tiremos as “cataratas
espirituais” que impedem que vejamos o que é o “novo” que Ele esta fazendo
brotar: novas formas da Vida Consagrada (com todas as ambigüidades e tensões
que isso acarreta, pois somente o fato de ser “novo” não garante que seja por
inspiração divina), comunidades intercongregacionais, equipes volantes e
itinerantes, novas formas de presença nos “novos areópagos” como dizia São João
Paulo II?
Qual é o “novo” que
Deus está fazendo brotar hoje para a VRC? Temos que descobrir, às vezes, às
apalpadelas (cf. At 17, 27), mas com a certeza que Deus não falha e que a
proposta da VRC não fracassa, mas se renova, talvez em formas ainda não
imaginadas, também dentro das Congregações tradicionais.
Realmente, a mensagem
do profeta Deutero-Isaías deve ter sido com uma luz no fim do túnel para os
exilados: “Vejam que eu estou fazendo uma coisa nova; ela já está
brotando!” Onde parecia ter somente
morte, despontava nova vida; onde desânimo, um novo alento; no meio da aridez
do deserto da vida, a flor. Novos
horizontes, novas perspectivas, novas esperanças! Mas, na alegria desse anúncio, não devemos
deixar passar quase como despercebido o alerta com que Deus encerra o
versículo: “Ela está brotando agora...e
vocês não percebem?” Uma advertência suave mas importantíssima....pouco
adianta Deus criar algo novo, se o povo nem percebe!
É bom notar que, embora
o profeta desafiasse o povo no Exílio a enxergar o “novo” da ação de Deus no
seu meio, ele não disse como era esse “novo”.
Desafiou os exilados a descobrir por si mesmos essa novidade da ação do
Espírito. Convidou-os a enxergar a nova
realidade com novos olhos e não julgá-la com a
visão dos tempos idos.
De fato, a história
mostra que uma grande parte do povo não conseguia descobrir o verdadeiro “novo”
que Deus fazia brotar. No desenrolar das
décadas, aconteceu o que foi previsto pelo profeta, a queda do Império
Babilônico e a oportunidade para o retorno a Jerusalém para quem quisesse. Sob
a liderança de Sasabassar, Zorobabel e Josué, milhares voltaram, reconstruíram
os muros de cidade e o Templo, e, animados por profetas com Ageu e Zacarias,
reconstituíram uma teocracia em Judá, embora politicamente subserviente ao
Império Persa. Uma nova aurora parecia
despontar. Não demorou a decepção!
Apesar dos esforços de profetas como Terceiro Isaías, arautos de uma
nova forma de viver a identidade judaica fiéis ao espírito renovador de Deus, a
hegemonia caiu nas mãos daqueles cujos horizontes eram limitados, não por má
vontade, mas pela sua incapacidade de pensar e sonhar além dos paradigmas
tradicionais.
Sob a liderança de
personagens como Esdras, Neemias Ageu e Zacarias, desenvolveu-se um verdadeiro
processo de “restauração” de Judá, com muitas mudanças contextuais e ajustes
pontuais, mas que falhou tragicamente no verdadeiro desafio de “refundar”,
“recriar” a sociedade, com uma visão verdadeiramente radicada no mais essencial
das tradições do Povo de Deus, mas livre para acolher também o radicalmente
novo, que teria sido o projeto de Deus.
Como consequência, durante quinhentos anos, as estruturas religiosas e
sociais se tornaram um tipo de camisa-de-força para submeter o povo à dominação
das classes dominantes e de esconder o verdadeiro rosto compassivo e
misericordioso de Deus. É claro que Deus
não se dá por derrotado e a visão realmente renovadora continuava alimentada
silenciosamente nos grupos os “Pobres de Javé”, até irromper de uma maneira impar
e inesperada na pessoa e missão de Jesus de Nazaré, que ousava dispensar
elementos desnecessários, acumulados durante séculos, e testemunhar claramente
o essencial.
Cuidemos também de não
cairmos na cilada das lideranças pós-exílicas.
Convencemo-nos que a “coisa nova” que Deus está criando na Vida
Consagrada não é simplesmente um retorno aos modelos do passado, modernizados e
ajustados aos novos tempos, nem consiste em buscar “novidades”, e muito menos
em refugiar-nos em formas arcaicas e anacrônicas de espiritualidade, aparência
e vivência. O “novo” não será uma volta às casas de formação cheias, às obras
seguras, às estruturas confirmadas, embora isso também possa acontecer. Mas precisamos desenvolver um olhar novo para
que captemos o que o Espírito esta criando de novo entre nós.
Há muitos sinais,
diversos serão mencionados nessa assembleia: comunidades intercongregacionais,
novas formas de inserção, missões itinerantes, novas estruturas de poder,
revitalização das relações humanas, renovada opção pelos excluídos etc. Ousemos acolher e discernir tudo isso em
espírito de fé e fidelidade criativa. Acarreta riscos? Claro que sim. Sem riscos
não se alcança nada na vida! Quanto os nossos fundadores e fundadoras
arriscaram? E criaram algo novo, muitas vezes remando contra a maré
eclesiástica, social e política.
Lancemo-nos para águas mais profundas, pois nas águas rasas de comodismo
não se pesca nada! Sigamos o exemplo do Papa Francisco – sejamos os modernos
Deutero e Terceiro Isaías, sonhando o sonho de Deus e colaborando no nascimento
daquilo que Deus quer criar, depois de séculos de vida eclesiástica e religiosa
muitas vezes dominada pelos herdeiros modernos de Esdras e Neemias! Um espírito
novo sopre na Igreja e na Vida Religiosa! Acolhemos e façamos parte!
Recordar
para Avançar e Inovar
No tempo de crise e
perplexidade dele, Deutero-Isaías retomava a memória do Êxodo, a experiência
fundante do Povo de Deus, como ponto de referência. Com a caminhada de séculos, esses primórdios
foram muitas vezes deixados no esquecimento pelos detentores do poder
religioso-político em Israel mas os profetas sempre foram vozes da memória das
raízes do Povo de Deus e da Aliança.
Esse desafio continua hoje para a VRC: acumulamos tantas estruturas e
costumes durante a nossa caminhada milenar que, frequentemente, a intuição
original, a razão-de-ser da VRC, cai ao segundo plano, se não na amnésia quase
total. Assim torna-se necessário que nós
também voltemos às origens, como há muitos anos tem-se insistido. Mas não basta
somente voltar às raízes, como se fosse para simplesmente “reproduzir” a
experiência original, feita dentro de um contexto muito diferente daquele que
confrontamos hoje. Assim nos mostra a
experiência do profeta Elias, narrado em I Rs 19,
1-18. Desanimado,
ameaçado, até desejando a sua própria morte, sem novas perspectivas, ele se
dirige até o Monte Horeb[4],
ou seja, ele “volta às fontes”. Volta, porém, sem renovar a visão, buscando
simplesmente repetir a experiência do passado. Ele aguarda Javé no furacão, no
fogo e no terremoto, sinais tradicionais da teofania, mas Javé não se
encontrava neles. Pelo contrário, o
Senhor estava na brisa mansa, onde o
profeta não o esperava encontrar.
Somente quando ele se abriu à nova maneira de Deus se manifestar, houve
o seu encontro com Deus, que o renovou e o remeteu de volta à sua missão
profética, com renovado ardor e nova força.
Igualmente, somente ao
abrirmos as nossas mentes, corações e olhos para novas experiências de Deus,
que se manifesta sempre com novas expressões, é que a VRC receberá o impulso
para “tomar o caminho de volta”. Não somente para repetir antigas formas,
expressões, estruturas, obras e costumes, mas para ser “luz das nações”, mergulhada
no contexto da sociedade complexa de hoje. Verdadeiramente, como escreve uma
teóloga inglesa: “Tem que existir algo da
essência da inspiração fundacional que não se pode perder sem que se perca a
própria inspiração fundante. Os fundadores e fundadores de uma congregação
religiosa focalizam o mistério de Cristo para os seus membros, mas estes fazem
mais do que focalizar um aspecto dos fundadores e devem estar cientes do perigo
de se fecharem em um culto dos fundadores e fundadoras. Assim novos membros
podem enriquecer a inspiração fundacional trazendo à tona novos elementos que
talvez não sejam suficientemente desenvolvidos”[5].
Estou criando coisa nova
Engana-se quem acha que a situação de crise atual da
VRC seja coisa inédita. As formas em que ela se expressa, as manifestações concretas
em muitas congregações talvez sejam novas, mas a História de Salvação demonstra
que sempre foi através de crises que o projeto de Deus avançava. Além de Deutero-Isáias, Jeremias, longe de
fazer jus à sua fama imerecida de ser pessimista, tinha este olhar, nos tempos
de tribulação e conturbação: “Conheço
meus projetos sobre vocês – oráculo de Javé: são projetos de felicidade e não
de sofrimento, para dar-lhes um futuro e uma esperança” (Jr 29,11).
Essa verdade se
verifica não somente em casos do Antigo Testamento, como o do Exílio de Babilônia,
mas também nos Evangelhos e nas experiências das primeiras comunidades. “Estou
criando coisa nova e vocês não estão enxergando?” podia ter sido indagação,
não somente no tempo do Exílio, mas de Jesus dirigindo-se aos seus
discípulos. Pois eles estavam como que
cegos pela ideologia do messianismo davídico e, por isso, incapazes de entender o verdadeiro messianismo de Jesus (cf. Mc
8, 21; 8,33; At 1, 6). As primeiras
comunidades tiveram muitos problemas para enxergar o “novo” que estava
despontando com a entrada dos gentios na comunidade. É só lembrar o conflito na
comunidade de Jerusalém, pelo tratamento das viúvas helenistas, ou a necessidade de uma Assembleia extraordinária,
que tradicionalmente denominamos “Concílio de Jerusalém”, que acolheu o novo,
representado pela experiência missionária de Barnabé e Paulo, embora demorasse a
ser totalmente colocado em prática, como demonstra o conflito em Antioquia (cf.
Gl 2,11-14). O que parecia um desastre
para a Igreja nascente, como a perseguição desencadeada
em Jerusalém, após a morte de Estevão, mostrou-se uma bênção, pois levou a
evangelização em outras regiões e entre outros povos (cf. At 8,4: 11,19-21). Até a separação acrimoniosa e sofrida de
Barnabé e Paulo, embora lamentável em si, resultou na formação de duas equipes itinerantes
missionárias, em lugar de uma.
Repetidamente, o que parecia desastre, fracasso e ruína, mostrou-se
renovação, revitalização e regeneração!
Mas exige um novo olhar para sair da lamentação e pessimismo e descobrir
o que Deus estava fazendo brotar!
Jesus costumava dizer,
terminando as suas parábolas: “quem tem
ouvidos para ouvir, ouça” (cf. Mt 13,9).
Diante da atual situação da VRC no Brasil,, o Espírito continua a germinar nova vida, mas
quem sabe, precisamos retirar os “véus” dos nossos olhos e mentes para enxergar
o que está acontecendo. Valem as palavras de uma grande teóloga norte-americana
da Vida Religiosa, Irmã Joan Chittister OSB: “A finalidade da VRC não é a
sobrevivência, mas o profetismo”. Como
escreve o Frei Timothy Radcliffe O.P. ex-Ministro-Geral dos Dominicanos:
“Esse é um tempo
de crise, e a Igreja se renova pelas crises. A História de Salvação é história
de crises que levam a renascimento, desde a Queda até a Última Ceia. Esse tempo de crise para a VRC ultimamente
será uma bênção e nos leva a uma renovação, talvez por caminhos que não podemos
imaginar. Mas isso só acontecerá se não ficarmos obcecados com a nossa
sobrevivência”[6]
Talvez hoje o
brado de Jesus para nós seja como aquele do Deutero-Isaías tantos séculos atrás:
“Vejam Que Estou Fazendo Uma Coisa Nova:
Ela Está Brotando Agora E Vocês Não Percebem?
Quem tem olhos para ver, que veja!”
[1] Is 43,
19. Citações
tiradas da Bíblia Sagrada Edição Pastoral; Paulus; São Paulo; 1990,
[2] Por
Exemplo 2 Rs 17, 1-6
[3]
Croatto, J. Severino,
Isaías, : A Palavra Profética e a Sua Releitura Hermenêutica, Vol II 42-55: A
Libertação É Possível, Vozes/Sinodal 1998, p.99
[4]
Nome usado na tradição das
tribos do Norte para Monte Sinai
[5] cf Coffey, Sr. Mary Finbarr HC: “The
Complexities and Difficulties of a Return Ad Fontes” em “A Future Full Of
Hope?” ed Gemma Simmonds CJ, The Colomba Press, Dublin, 2012
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